Estaremos a viver uma guetização da Bioética?
Corremos o risco da fragmentação do saber e do ser, transformando a especialização num fenómeno de criação de “guetos intelectuais” que fazem perder a visão de conjunto da realidade.
Apesar da crescente fragmentação social, nunca como hoje se procurou tanto uma visão integradora da mesma sociedade. Talvez por esse motivo, as tentativas de especialização vão sendo cada vez mais assumidas como elementos essenciais para a eficácia dos procedimentos.
Contra a tendência profetizada por Durkheim de uma solidariedade mecânica, os pioneiros da Bioética aceitaram o desafio de pugnar por “pontes para o futuro”. Embora crentes desta realidade, corremos o risco da fragmentação do saber e do ser, transformando a especialização num fenómeno de criação de “guetos intelectuais” que fazem perder a visão de conjunto da realidade.
O caso da Neuroética é paradigmático. Dentro da comunidade bioética, muitos antevêem que esta forma de especialização irá retirar força e sentido à reflexão bioética. Os que assim pensam não deixam de ter razão! Contudo, a complexidade e a prioridade dada à investigação em neurociências tornam premente um olhar particular aos valores subjacentes às suas questões éticas, sociais, legais e filosóficas. O desenvolvimento das neurociências, especialmente na área da imagiologia e da farmacologia permitem-nos entender mais sobre o cérebro humano, sobre sua natureza dinâmica e sobre os seus distúrbios.
A investigação em neurociências suscita várias preocupações que vão desde as questões sobre o significado ético dos circuitos neurais, até a questão de como um modelo biológico ou uma descrição neurocientífica das doenças cerebrais pode afectar indivíduos, comunidades e sociedades em geral.
O desenvolvimento das aplicações neurotecnológicas para aliviar os sintomas ou até melhorar o cérebro humano geram outras preocupações, como o potencial impacto na definição da personalidade ou no conceito de autonomia. Algumas descobertas empíricas estão a desafiar concepções antigas sobre quem somos, sobre a capacidade de escolher livremente ou sobre a responsabilidade moral.
Uma visão realista da necessidade da especialização da Bioética no âmbito das neurociências terá de ter, por isso, três elementos essências: a análise prospectiva, para identificar precocemente questões éticas e sociais; o envolvimento dos cidadãos, no sentido de promover o envolvimento com diferentes pontos de vista e fortalecer o diálogo público; a sustentação dos fundamentos da ética, através da ética aplicada e do desenvolvimento dos princípios e mecanismos que garantam o respeito pelas questões éticas que o magma do desenvolvimento neurocientífico suscita.
A reflexão neuroética desempenha, assim, um papel fundamental nessa integração das dimensões sociais, científicas e éticas.
Para que a Neuroética possa cumprir a sua função prospectiva, ela tem uma fundamentação conceptual e filosófica. Na medida em que o faz, a Neuroética visa oferecer mais do que a assistência aos neurocientistas na identificação das questões associadas à integridade científica e dos componentes sociais, legais e culturais da sua investigação. A fundamentação bioética, feita através da Neuroética tenta abrir um espaço produtivo no seio da comunidade para examinar os problemas relevantes e fornecer o lastro necessário para examinar os possíveis impactos das bases neuronais da deliberação.
A especialização da bioética, longe de lhe retirar a força, toma como ponto de partida a visão de que todas as questões levantadas pelas neurociências não podem ser adequadamente tratadas sem se concentrarem no “aggiornamento” da fundamentação da ética.
A actualidade da reflexão Neuroética não deveria estar, por isso, em questão. Não só porque é uma preocupação essencial da comunidade científica, mas, também, porque é através desta área da Bioética que poderemos perceber um pouco mais sobre o significado do agir humano.
Aos que reflectem na área da Neuroética é pedida a atenção redobrada para que esta especialização não se torne numa “guetização” da Bioética. O que continua a ser exclusivo da Bioética é o seu compromisso com a ideia de que buscamos um ponto em comum: a definição do agir do homem como humano. Para isso é essencial a atitude herdada da tradição cultural que enraíza a Bioética: a aproximação.