Numa das últimas sequências de O Irlandês, a personagem de Robert de Niro (Frank Sheeran, o hitman irlandês ao serviço da Máfia italo-americana em cujas memórias o argumento do filme de Scorsese se baseia), sentindo o peso da velhice e da doença, projecta hipóteses para o seu funeral. E acaba por escolher um gavetão, por lhe parecer, diz na narração em off, menos definitivo (less final) do que a cremação ou um enterro propriamente dito. A sequência, o discurso e as reflexões de Sheeran são quase cómicas, naquele humor negro que percorre todo o filme e infecta mesmo boa parte dos seus momentos dramáticos (na Máfia vista por Scorsese, drama e comic relief sempre foram duas faces da mesma moeda), mas é provavelmente aí que se isola uma ideia-chave — ou a ideia-chave — de todo o filme. Que é um filme sobre gente (o Sheeran de de Niro, o Bufalino de Joe Pesci, o Jimmy Hoffa de Al Pacino) que nunca acredita, ou se recusa a admitir, ter chegado a um momento definitivo, e que tudo pode continuar e continuar e nada ser “final”. É isso que os perde, de maneiras diferentes (e de forma muito nítida e nada metafórica, é o que perde Jimmy Hoffa): vêem a porta sempre entreaberta, e gostam de a ver a sim, como no último plano vemos e ouvimos com o envelhecido Sheeran.
O contributo do PÚBLICO para a vida democrática e cívica do país reside na força da relação que estabelece com os seus leitores.Para continuar a ler este artigo assine o PÚBLICO.Ligue - nos através do 808 200 095 ou envie-nos um email para assinaturas.online@publico.pt.