América Latina: a dignidade de uma bandeira
Das ruas de Bogotá às cidades bolivianas, passando por Chile e Equador, os manifestantes mostram na rua que já não aguentam a desigualdade e recusam-se apenas a sobreviver, mesmo que com isso se percam olhos ou se chegue mesmo a morrer.
Nas manifestações desta quinta-feira na Colômbia, que mobilizaram milhares e milhares de pessoas numa greve geral que foi o primeiro grande protesto contra o Presidente Iván Duque, lá estava a whipala, a bandeira dos povos indígenas bolivianos. Muitos exemplares desse estandarte colorido, símbolo do orgulho indígena que Evo Morales soube recuperar na Bolívia, garantiam a solidariedade com o país a sul, unido à Colômbia pela cordilheira dos Andes.
Os estudantes e os trabalhadores colombianos reclamavam contra as políticas de austeridade, contra a desigualdade cada vez mais profunda no país, pelos direitos das mulheres, marcharam por múltiplas reivindicações que demonstram, sobretudo, o mal-estar social generalizado na América do Sul.
Na Colômbia, no Equador, no Chile, na Argentina (onde a crise económica levou à derrota do Presidente Mauricio Macri e ao regresso do peronismo ao poder) há toda uma camada mais jovem da população descarregada de futuro a braços com a mochila pesada do presente. E tão carregado é o fardo que se vem rompendo pelas costuras, espalhando frustrações pela calçada em jeito de protesto caleidoscópio: reivindicações heterodoxas de uma zanga homogénea – contra os políticos, as instituições, o sistema financeiro e a sua influência nefasta sobre as políticas que aprofundam a desigualdade.
Na Bolívia a revolução popular é agora uma contra-revolução indígena que nas ruas tenta impedir que a estes lhes sejam retirados os direitos (re)conquistados nos 16 anos de Evo Morales no poder. Como dizia ao PÚBLICO Oliver Stuenkel, analista político brasileiro da Fundação Getúlio Vargas, “parte da elite branca não aceitou o facto de que Evo mudou a Bolívia para sempre, empoderou a população indígena que não tinha voz política, que não estava organizada e já não tem volta atrás”. E isso está a ficar demonstrado nas ruas bolivianas.
“Fala-se de abusos na saúde, na educação, no tratamento quotidiano”, escreve Aldo Torres Baeza, cientista político e escritor chileno, no site Reflexión y liberación, sobre a situação no seu país, mas que muito facilmente se pode estender como reflexão a muitos outros, onde as ruas fervilham.
No Equador, o fim dos subsídios aos combustíveis desatou o protesto dos que vivem de transportar pessoas e mercadorias que num ápice se estendeu a outros sectores e a outras críticas. No Chile, foi o aumento do preço do metropolitano a desatar o nó górdio de um quotidiano cada vez mais hostil para grandes camadas da população.
Se há algo que une estes protestos a outros em muitas partes do mundo, como o dos Coletes Amarelos em França no ano passado, como a imolação do vendedor tunisino em 2011 que esteve na génese dos protestos que se generalizaram pelo Médio Oriente e Norte de África é essa dimensão única muito concreta, neste mundo de globalização, de salários baixos e desemprego: as pessoas lutam pela dignidade; por poderem viver e não só sobreviver.
“Marchamos pela defesa da vida, pelos irmãos indígenas que foram assassinados este ano”, dizia ao El País Giovani Simbaqueda, professor universitário colombiano, em plena manifestação de Bogotá, rodeado de gente com whipalas desfraldadas.
O escritor Ernesto Garratt, num texto assertivamente intitulado “O Versailles chileno”, publicado pela CNN em espanhol, fala sobre o seu país, mas podia decalcar-se no mapa mundi em variadíssimas latitudes: “Este cruel modelo dá privilégios quase monárquicos a apenas 1% da população, (…) o resto, a grande maioria, vive com salários miseráveis do terceiro mundo e um custo de vida europeu”.
“A desigualdade social é mais violenta que qualquer protesto”, dizia o jovem colombiano Cristian Gamboa aos jornalistas do El País, para justificar essa necessidade de resistir, de enfrentar a polícia. Não é delinquência, nem vandalismo, mas um movimento de recuperação da dignidade, desobediência civil como a do movimento negro nos Estados Unidos quando decidiu tomar nas mãos aquilo que cabia aos negros, como seres humanos, ter direitos, trabalhar. Rosa Parks só se sentou num lugar que não era para si porque estava cansada.
O decreto emitido pela Presidente interina da Bolívia, Jeanine Áñez, assim que assumiu o poder, eximindo de responsabilidades os militares e polícias que matem manifestantes – tal como no Brasil do Presidente Jair Bolsonaro, onde as forças de segurança também receberam o beneplácito de matar impunemente –, é muito parecido com a primeira reacção do Presidente chileno, Sebastián Piñera, aos protestos no seu país, rodeado por militares, falando numa guerra contra os vândalos.
Só que o número recorde de manifestantes que perderam olhos por balas disparadas pela polícia no Chile ou os 32 mortos confirmados pelo Ministério Público na Bolívia – onde as forças de segurança reprimiram até o cortejo fúnebre de quinta-feira em La Paz –, podem lembrar o passado, mas não calam os protestos do presente.
Nestes novos tempos de chumbo, onde Piñera foi buscar os soldados para impor a ordem pública, algo que não se via desde a ditadura de Pinochet, o Presidente chileno percebeu que em democracia, mesmo quando tutelada pelo poder económico, há certas acções que trazem custos e o Governo acabou por recuar. O Presidente deixou cair o tom belicoso, anunciou medidas apaziguadoras (muitas delas decalcadas das que Emmanuel Macron adoptou em França para responder aos Coletes Amarelos) e até restringiu o uso de bolas e balas de borracha para contrariar os manifestantes.
Na Bolívia, o Governo interino, sem poderes constitucionais que não fossem os de convocar eleições, mudou chefias militares, anunciou perseguições aos eleitos do Movimento ao Socialismo, de Morales (exilado no México), até reviu contratos de exportação de gás para a Argentina porque os argentinos elegeram um Presidente de esquerda. E pensava que a repressão violenta dos indígenas lhe ia ganhar as ruas.
Só que os indígenas, escravizados, ignorados, desprezados, perseguidos tantos anos, que até 1952 nem sequer escolas tinham para enviar os filhos, têm a pele endurecida por séculos racismo da elite branca que agora voltou ao poder e não estão dispostos a abdicar dos direitos adquiridos durante os 16 anos de Morales. E estão mesmo dispostos a morrer pela whipala. Como outros, noutras latitudes, sentem que já não tem nada a perder.