Eugène Green: um cineasta da palavra em Serralves

Casa do Cinema Manoel de Oliveira inaugura esta segunda-feira a primeira exposição retrospectiva da obra do realizador de A Religiosa Portuguesa. E estreia o seu novo documentário, Lisboa Revisitada.

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Exposição Eugène Green. A Imagem da Palavra na Casa do Cinema Manoel de Oliveira Paulo Pimenta
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Eugène Green na rodagem de A Religiosa Portuguesa DR

A estreia absoluta do documentário Lisboa Revisitada (2019) faz parte do programa com que a Casa do Cinema Manoel de Oliveira (CCMO), em Serralves, homenageia a partir desta segunda-feira o cineasta norte-americano naturalizado francês Eugène Green (n. Nova Iorque, 1947).

Com o título A Imagem da Palavra, escolhido pelo próprio realizador de A Religiosa Portuguesa (2009), esta será a primeira vez que Green vê a sua filmografia não apenas exibida na totalidade – o que já tinha acontecido em Toulouse e em Berlim –, mas acompanhada por uma exposição que põe em relevo “muitas das configurações estéticas que marcam a sua singularidade, ao mesmo tempo que explora ecos formais e ressonâncias temáticas entre os filmes”, escreve no programa António Preto, director da CCMO.

Lisboa Revisitada, com a duração de cerca de meia hora, foi, de resto, uma encomenda feita a Eugène Green para esta ocasião, que na fundação portuense irá prolongar-se em Janeiro com a retrospectiva dos seus filmes e uma “carta-aberta” em que mostrará autores da sua “família” estética e cinematográfica.

Ao PÚBLICO, num intervalo da montagem da exposição, Eugène Green explicou que Lisboa Revisitada é o seu primeiro filme de montagem. “É constituído por planos da rodagem de A Religiosa Portuguesa, em 2008, e depois de Como Fernando Pessoa Salvou Portugal”, ao qual acrescentou, já no corrente ano, com o seu director de fotografia Raphaël O’Byrne, “novos planos captados nos mesmos lugares, desta vez com os turistas, os tuk-tuks, todo este horror”, exclamou.

Além de um olhar crítico sobre a realidade actual da capital portuguesa, o realizador diz que Lisboa Revisitada é também, de uma forma mais geral, “um documentário sobre o mundo moderno, que destruiu a civilização e as cidades com o turismo e a especulação imobiliária”.

António Preto recorda, a propósito, o paralelismo do novo filme de Green com a curta-metragem de Manoel de Oliveira O Conquistador Conquistado, que integrou a obra colectiva Centro Histórico, produzida para a Guimarães 2012 – Capital Europeia da Cultura. Já aí se anunciava o efeito predador do turismo no território conquistado por… D. Afonso Henriques…

Fugir da “Barbárie”

A exibição do novo documentário de Green surgirá no último espaço da exposição A Imagem da Palavra na CCMO. Até chegar lá, o visitante será familiarizado com as imagens, cenas e sequências escolhidas de uma obra muito pessoal, mesmo se curta e algo tardia na biografia de Eugène Green. Nascido em Nova Iorque em 1947, o cineasta que é também escritor, ensaísta, dramaturgo, encenador e actor trocou o seu país pela Europa no final dos anos 60. Fixou-se, primeiro, em Inglaterra, como ele disse, “para aprender inglês”, algo que considerava impossível no seu país natal, a que também chamou a “Barbárie”. Viveu na Alemanha, na República Checa e em Itália, antes de se fixar definitivamente em França, onde em 1976 conquistou uma segunda nacionalidade.

O seu filme de estreia, Toutes les Nuits (2001), inspirado em A Educação Sentimental, de Flaubert, recebeu o Prémio Louis Delluc. Com a segunda longa-metragem, Le Monde Vivant (2003), venceu o principal prémio do IndieLisboa do ano seguinte. Foi a chegada do realizador a Portugal, cuja cultura – com a literatura e o fado em lugar de destaque – passou a integrar as suas afinidades electivas. “É uma coisa minha. É algo que vem da minha memória mais antiga, do meu nascimento. Como uma reminiscência platónica”, justifica ao PÚBLICO.

Regressou várias vezes ao país, primeiro para rodar A Religiosa Portuguesa, adaptado das Cartas Portuguesas atribuídas a Mariana Alcoforado, e depois para fazer Como Fernando Pessoa Salvou Portugal (2018), uma curta que encena, em registo quase burlesco, o episódio da criação, pelo poeta, do slogan para a publicidade da Coca-Cola: “Primeiro estranha-se, depois entranha-se”. Dois filmes cujas imagens e sequências podem também ser seguidas na exposição da CCMO, em diálogo com outros títulos da sua obra, como Faire la Parole (2015) e En Attendant les Barbares (2017). Uma filmografia onde os temas da religião, da graça, do amor são iluminados com imagens que se propõem desvendar a realidade invisível do mundo.

“Esta exposição não descura, igualmente, o modo como o realizador reinventa estratégias formais dos primórdios do cinematógrafo, ao mesmo tempo que lida com um imaginário que, parecendo extemporâneo, traz à luz muitas das contradições do nosso tempo. A centralidade da palavra, a teatralidade, o questionamento da representação, o neo-primitivismo não são, portanto, as únicas afinidades que o cinema tão desalinhado quanto erudito de Eugène Green mantém com a modernidade paradoxal de Manoel de Oliveira”, escreve António Preto no programa de A Imagem da Palavra.

Além da exposição, cuja inauguração, esta segunda-feira à noite, contará com a presença do realizador, o programa inclui a publicação de um livro, uma conferência sua, no dia 27, sobre O cinematógrafo, arte da presença, e ainda uma masterclass.

No início de Janeiro começa o ciclo de filmes. Primeiro, com a “carta-branca” dada a Green para uma escolha que recaiu em dois clássicos: Blow-Up (1966), de Michelangelo Antonioni (dia 3), e Conto de Outono (1998), de Éric Rohmer (dia 4); segue-se, a partir do dia 10, a revelação de obras de três jovens realizadores, dois franceses e um galego, que pertencem à sua “família cinematográfica”: Clément Cogitore, com Braguino (2017), Damien Manivel, com Le Parc (2016), e Oliver Laxe, com Mimosas, (2016). A 17 de Janeiro, o professor e crítico francês Mathias Lavin faz também uma conferência sobre A palavra no cinema de Eugène Green.

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