Liceu Augusto Gomes, Matosinhos, 11.º ano. Escutávamos Inquietação, de José Mário Branco, uma pérola que nos era dada a ouvir pela nossa dedicada professora de Língua Portuguesa. Perguntava ela: “O que é o mais importante, no vosso entender, naquilo que diz José Mário Branco? Ouçam lá bem.”
A canção voltava a tocar outra vez, a acordar-nos dos bocejos e da conversa com o colega do lado, e nós discorríamos sobre a angústia, a falta de lugar, a alienação, a dita “inquietação”, enfim, o mal de vivre próprio da adolescência — que se traduzia em melancolia e soturnidade até ao almoço e euforia tarde fora, até ao tocar da campainha — todo derramado em cima da canção.
E a professora ouvia, insistia, lá achava uma ou outra resposta mais rica, menos autocentrada, mas continuava, insatisfeita: “Ouçam até ao fim, vá. O que é que é o mais importante?” E nós toca de sofrer e sentir e dor e angústia e solidão e ai, que a vida nos dobrará pela vida fora.
A professora lá pára, finalmente, a canção, respira fundo e diz, num sorriso: “'Inquietação, inquietação... Porquê não sei, porquê não sei ainda’. Mas sabe o quê, o autor? Sabe que essa é a coisa que é linda. A canção não é triste, não é sobre angústia, minha gente, é sobre propósito, sobre agitação. É o contrário da resignação. Traz angústia, pois traz. Ainda assim, essa coisa é que é linda.”
E nós entreolhámo-nos (disso lembro-me bem) e devemos ter respondido, prontamente, que já sabíamos aquilo de que ela falava, que também sentíamos isto e aquilo, que também achávamos assim e assado. Enfim, com a arrogância própria da idade, perdemos pouco tempo a pensar e muito a dizer, mas o certo é que não sabíamos coisa nenhuma. Não sabíamos nada que “coisa linda” era aquela de que falava José Mário Branco, na sua voz próxima, naquele seu dizer tão límpido e sem afectações.
A verdade é que a memória me falha e não sei como caiu, entre nós, esta revelação, nos tempos que se seguiram, com tanta angústia adolescente entre mãos; mas sei que hoje, volvidos 15 anos, recordo esse momento como a primeira vez que me apresentaram a José Mário Branco. E posso descrevê-lo com detalhe porque — e isso sei-o sem que a memória me traia — me socorri da poesia, da vastidão de mundo e humanidade do cantautor para fazer face a muitas curvas e contracurvas que a vida adulta, rapidamente, nos estende como caminho. Assim, aquele momento passou a carregar consigo a força toda das circunstâncias que lhe seguiram e é, hoje, a esta distância, um encontro fundador de consciência, mesmo que mal arrumado entre uma manhã e uma tarde de um dia de liceu tão barulhento, tão inconsequente, como outro qualquer.
É tão grande a sorte de termos uma professora atenta e talentosa, que nos amplie os horizontes, que pegue na força da natureza em bruto da juventude e a trate com o cuidado que esta merece, como a de nos cruzarmos com a música de José Mário Branco porque a verdade é que, entre os dois, não há diferença nenhuma.
Há gente que existe, entre nós, para nos dizer as coisas que ainda não sabemos, para nos lembrar que há, sim, caminhos alternativos à resignação perante a ferocidade e fealdade que teima em querer morder-nos os calcanhares, à medida que o tempo avança, quando estamos já longe de ouvir as campainhas no polivalente do liceu, que anunciavam a hora de almoço ou o final do dia.
Um artista que nos comove e nos acompanha, que nos abre os olhos, seja em que altura for, é como um professor ou um amigo que, graciosamente, nos despertou e amparou. Não nos faz sentir pequenos nem incapazes, nem nos humilha por, pela vida fora, tantas vezes não sabermos responder à pergunta. Diz-nos antes: “Ouçam lá outra vez. Ouçam lá melhor”, mesmo que tenha tido sempre ali, à mão, a resposta guardada à nossa espera.
Por todas as perguntas e respostas, um obrigada ao meu amigo e professor José Mário Branco que, sem nunca nos termos conhecido, tantas aulas me deu.