Grândola, vila morena: como um erro tecnológico determinou o futuro histórico de uma canção
Testemunho de José Mário Branco publicado no Observatório da Canção de Protesto sobre como foi gravado o som dos passos numa das mais emblemáticas canções portuguesas. O texto acompanhou Grândola, vila morena – Para sempre, José Afonso, CD-livro editado pelo município de Grândola em Outubro de 2018.
Alentejo, José Afonso, Fraternidade Operária, Cantigas do Maio, 25 de Abril. Deve ser muito raro na história longa e profusa das canções haver uma que, sozinha, reúna tantas e tão importantes relações genéticas! Além disso, convém saber que o acaso de um erro tecnológico pode ter determinado o papel histórico desta canção. Passo a explicar. Quando, em 1971, José Afonso chegou a Paris para gravarmos o que viria a ser o seu álbum Cantigas do Maio, uma das canções que ele propunha para esse álbum chamava-se Grândola vila morena. Era uma canção simples com três quadras — aparentemente simples como tantas canções desse cantautor genial — que, no dizer dele, só fora cantada uma vez na colectividade a quem a dedicava, a Sociedade Musical Fraternidade Operária Grandolense.
Então eu que, embora nascido e crescido no Porto, fora desde muito jovem marcado por várias estadias na aldeia de Peroguarda (Baixo Alentejo), propus ao Zeca que déssemos a essa canção a estrutura tradicional do cante alentejano: a sequência do ponto (solista inicial), do alto (introdutor de uma segunda voz mais aguda) e do coro masculino grave. Além disso convinha alterar a estrutura da letra acrescentando a inversão das quadras tão típica desta forma coral.
Assim foi. Foi decidido apresentá-la com essa forma, sem acrescentar quaisquer instrumentos para além das vozes.
Porém, influenciado por uma das imagens mais fortes que eu guardo de Peroguarda — a imagem dos homens abraçados, regressando da monda ao fim da tarde, cantando no regresso a casa —, também propus que se ouvissem os passos deles, no macadame da estrada, ao ritmo da canção. Passos lentos, porque a monda cansa. E então ensinei ao Zeca, ao Fanhais e ao guitarrista Bóris (Carlos Correia) como é que os camponeses faziam esses passos: alternadamente, num claro compasso quaternário, um pé arrasta-se e, no tempo seguinte, pousa no chão — o movimento seguinte do outro pé completa o quaternário.
Aceite a proposta, pedi ao técnico que, numa dessas noites — bem tarde, para evitar ruídos parasitas na estrada e nos campos vizinhos — colocasse 4 microfones em redondo no saibro do jardim do estúdio, que era no sótão de um palacete acastelado de uma pequena aldeia 60 km ao norte de Paris. Foi preciso encontrar 4 longos cabos para ligar os microfones ao estúdio, e outros 4 cabos, de igual comprimento, para nós termos, ao gravar, uma referência rítmica nos auscultadores. Gravado um metrónomo com o andamento numa das pistas, às 3 da manhã de uma dessas noites gravámos os passos no saibro. Nos dias seguintes foram gravadas as vozes — o Zeca cantando o ponto e o alto, e o Fanhais, o Bóris e eu cantando o coro.
A canção foi assim incluída no álbum Cantigas do Maio, e fez o seu caminho na comunidade, de ouvido em ouvido, como todas as canções editadas em disco que são como filhos que crescem e vão à sua vida.
Até que, menos de três anos depois, soou a hora da libertação. E o som que soou nessa hora foi a Grândola, vila morena.
Um dia, mais tarde, perguntei ao Otelo Saraiva de Carvalho: “Porque é que vocês escolheram essa canção para dar o sinal do 25 de Abril?” E ele respondeu: “Porque é uma canção de forma tradicional que levantava menos suspeitas, porque é do José Afonso e, sobretudo, por causa daquele som dos passos em ar de marcha militar…”
Ou seja, na mistura da canção nós tínhamos cometido algum erro pois o que para nós eram passos lentos e arrastados soou às pessoas com o dobro do andamento, como se o momento de arrastar o pé fosse mais um passo! Ou seja, o som do arrastar do pé não se distingue do som do pousar do pé. De como um erro tecnológico determinou o futuro histórico de uma canção