Alerta vermelho pela democracia

O alerta que o caso Trump lança sobre as democracias projecta-se um pouco por todo o planeta, até nas geografias mais insólitas.

Apesar de todos os precedentes – ou talvez por causa deles e do seu excesso caricatural – nunca imaginei que na democracia mais poderosa do mundo fosse possível acontecer o que aí vemos acontecendo. Já conhecíamos todas as aberrações relacionadas com o fenómeno Trump, capazes de nos deixarem mudos de espanto, mas talvez por isso mesmo não estaríamos à espera de ver um acontecimento supostamente menor, relacionado com um país e com personagens secundários, tornar-se o teste decisivo e a possível queda definitiva no abismo daquilo que nos habituámos a designar por trumpismo.

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Comício de Donald Trump em Bossier City, Los Angeles, na sexta-feira Reuters/TOM BRENNER

A audiência pública da antiga embaixadora americana na Ucrânia, Marie Iovanovitch, no processo de destituição de Donald Trump desencadeado pela Câmara dos Representantes, não parecia, à partida, alterar nada de muito significativo em relação ao que já sabíamos sobre o caso. Antes dela já haviam falado dois outros diplomatas com responsabilidades no dossier ucraniano que, talvez surpreendentemente, não tiveram pejo em denunciar as interferências abusivas, disparatadas e “loucas” – foi mesmo esse o termo utilizado por um dos depoentes – do presidente Trump, nomeadamente através do seu advogado pessoal (e verdadeira alma danada) Rudolph Giuliani, nas relações diplomáticas normais entre dois Estados soberanos.

Toda a gente sabe o que está basicamente em jogo: a tentativa de Trump, através de um contacto telefónico com o novo presidente ucraniano, Vladimir Zelensky, de negociar a troca de uma prometida ajuda americana com a investigação pelos serviços ucranianos de um caso que comprometia Joe Biden (um dos mais bem colocados rivais democratas de Trump nas presidenciais de 2020). Só que o caso não começa nem acaba aí, bem pelo contrário. A influência das redes de corrupção existentes entre a Ucrânia e os EUA tinha estado precisamente na origem do afastamento da embaixadora Iovanovitch que precedeu o telefonema de Trump a Zelensky, mas no qual o Presidente americano não deixara de referir-se à diplomata em termos “ameaçadores” e “intimidatórios” (incluindo referências do tipo: “Ela vai passar por algumas situações” …).

Para culminar tudo, Trump não escapou à tentação de comentar “em directo”, via Tweeter, as declarações da embaixadora na audição da Câmara dos Representantes, numa espécie de irresistível confissão do seu envolvimento no caso – e abrindo assim a porta às mais comprometedoras especulações. Mesmo quem nada soubesse ou suspeitasse de relações estranhas entre Trump e a Ucrânia – como constou ter-se passado com a Rússia e Putin – não poderia deixar de ficar atónito com este comportamento. Simplesmente, não é isso que acontece com a grande maioria do “establishment" republicano (e os respectivos senadores que decidirão do resultado final do “impeachment"). Ou seja, por mais absurdo e autoculpabilizante que seja o comportamento de Trump, nem isso parece ser suficiente para ele perder o apoio do seu partido. Eis aonde pode chegar o estado de saúde da principal democracia do mundo se, entretanto, a situação não se tornar absolutamente insustentável (embora confesse pessoalmente que preferia ver Trump derrotado nas urnas e não pelo mero recurso ao “impeachment").

O alerta vermelho que o caso Trump lança sobre o estado das democracias projecta-se um pouco por todo o planeta e até nas geografias mais insólitas (como é o caso da xenofobia crescente no Norte da Europa). Não é certamente por acaso que vivemos um tempo de inquietação, revolta e contestação que atingem até países aparentemente impávidos (como a nossa vizinha Argélia) ou em que os equilíbrios democráticos podem ser alvo de desafios de desfecho perigoso (como na nossa vizinha Espanha). É precisamente nestes tempos que temos de viver com vigilância redobrada.

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