Para Damien Manivel, “a arte pode ajudar-nos a viver”
A obra completa do jovem cineasta francês que procura “a bela ingenuidade” é alvo de retrospectiva no LEFFEST, com destaque para o seu filme sobre a dança Les enfants d’Isadora
“É preciso dizer as coisas de maneira frontal, mesmo que isso possa parecer ingénuo, romântico ou até fora de moda. Detesto o distanciamento, o comentário constante sobre o que estamos a ver; precisamos da bela ingenuidade que existe num poema, num filme. É um gesto que é preciso fazer, hoje, porque vivemos numa sociedade que não abre espaço para a poesia.”
É assim que Damien Manivel (Brest, 1981) descreve aquilo que quer fazer com o seu cinema: desmontar o cinismo e a observação e convidar o espectador a ser, ele próprio, parte da experiência transformativa da arte. Olhar para o cinema como algo que pertence a todos aqueles que quiserem investir-se, e às suas emoções, numa obra de arte.
Manivel tem procurado esse propósito na década que já leva como realizador e dá-lhe a sua maior visibilidade na sua quarta longa-metragem, Les enfants d’Isadora, que teve estreia mundial em Agosto último em Locarno, onde recebeu o galardão de melhor realização. É o filme “mais pessoal” deste jovem cineasta francês que tem já apreciável carreira no circuito de festivais e que é agora homenageado no LEFFEST de Paulo Branco.
Em Locarno, Manivel já tinha sido premiado com uma menção especial do júri pela sua primeira longa, Un jeune poète, em 2014; as obras seguintes foram seleccionadas para as paralelas de Cannes (Le parc, ACID 2016) e Veneza (Takara – La nuit où j’ai nagé, co-dirigido com Kogei Igarashi, Orizzonti 2017). As quatro longas serão exibidas no LEFFEST, permitindo ao público português descobrir o conjunto de uma obra ainda pouco vista entre nós (das suas longas, só Le parc esteve, fora de concurso, no Indielisboa, que mostrou igualmente as curtas La Dame au chien, de 2011, e Viril, de 2007).
Les enfants d’Isadora é o filme mais pessoal de Manivel porque é aquele que se debruça mais directamente sobre a arte por onde o realizador começou: a dança. “Fui bailarino, e de certo modo foi a dança que me levou ao cinema,” explicou Manivel ao PÚBLICO em Locarno. “E desde que comecei a filmar, em 2006, que tenho vontade de fazer um filme sobre a dança. Precisei deste tempo todo para descobrir uma maneira de falar de algo que me é tão próximo, que deixou tantas memórias e tantos gestos dentro de mim. Era preciso que eu amadurecesse.”
Embora todos os seus filmes sejam “atravessados” pela dança, é Les enfants d’Isadora que torna essa ligação explícita: o seu ponto de partida é A Mãe, um solo criado em 1913 pela lendária bailarina Isadora Duncan após a tragédia da perda dos seus dois filhos. Manivel acompanha o modo como quatro mulheres lhe respondem: uma bailarina em ensaios (a actriz profissional Agathe Bonitzer); uma bailarina com trissomia 21 que prepara a sua representação com uma coreógrafa (a bailarina Manon Carpentier e a coreógrafa Marika Rizzi); e uma espectadora de uma das representações (a bailarina e coreógrafa Elsa Wolliaston).
Quase sem diálogos, o cineasta pretende conjurar, nas suas palavras, um “caderno de esboços de gestos, de gestos de pesquisa, de gestos de trabalho, de gestos de transmissão ou de recordações de gestos”. “Não se tratava de dançar o solo como há cem anos,” explica. “Antes de ver o que esses gestos podem revelar em corpos contemporâneos, em mulheres de hoje, e o que nos podem dizer desses corpos.” É um projecto pensado para os nossos dias e que se articula com a obra delicada, frágil do cineasta: “falar da arte com desmesura, com lirismo, com uma certa ingenuidade no bom sentido, e dizer que a arte nos pode transformar, nos pode ajudar a viver. Precisamos dessa poesia.”
Evidentemente, o facto dos corpos que Manivel filma em Les enfants d’Isadora escaparem aos lugares-comuns é em si muito importante. Mas não houve segundas intenções, segundo o realizador: “Não pensei o filme como um gesto político mas como uma expressão do meu pensamento profundo. Claro que mostrar estes corpos, filmá-los assim, é evidentemente político. Mas o que me interessava também era filmar qualquer coisa de extremamente simples, e devolvê-lo ao espectador com a mesma vida e a mesma beleza que existiu durante a rodagem,” explica Manivel, que assume com um sorriso as contradições que isso levanta com a precisão de gestos e passos exigida pela dança. “Desde o meu primeiro filme que trabalho muito a precisão, a lentidão, o silêncio. Mas não me considero minimamente um cineasta austero, nem tenho um método particular de filmar. Gosto muito da precisão, admiro a precisão na arte, a capacidade de me expressar com poucas palavras bem escolhidas e muito simples; mas também trabalho de maneira muito intuitiva, por vezes desordenada, impulsiva. Não gosto da imprecisão.”
A homenagem a Damien Manivel no LEFFEST exibe Un jeune poète (2014; cinema Nimas, sábado 16 às 11h), Le parc (2016) e Takara (2017) numa mesma sessão (Nimas, segunda 18 às 14h) e Les enfants d’Isadora (2019; duas sessões, sábado 16 às 15h no Nimas e sábado 23 às 18h no Centro Cultural Olga Cadaval).