Colômbia: após o acordo de paz, a esperança e o ódio mantêm-se “indestrutíveis”

Mads Nissen desenvolveu, ao longo de 13 anos, um retrato da fragmentada sociedade colombiana, dando enfoque ao difícil processo de paz que se iniciou em 2016, com o cessar-fogo assinado entre as FARC e o governo do país. We Are Indestructible, o livro que editou, é o retrato de um país “destruído pela guerra” e onde a “desigualdade é o combustível da violência”.

Foto
©Mads Nissen

Quinta-feira, 23 de Junho de 2016, foi um dia histórico para a Colômbia: o governo do então presidente Juan Manuel Santos e as Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (FARC) assinaram um acordo de cessar-fogo que viria a colocar termo a uma das mais longas e sangrentas guerras civis do último século. Os números relativos ao custo humano desse conflito impressionam: 52 anos de violência e tumulto, 200 mil vítimas mortais, 80 mil desaparecidos e 6,6 milhões de refugiados. Directa ou indirectamente, três gerações de colombianos sofreram na pele as consequências da guerra. Três anos depois do cessar-fogo, nos corações de muitos colombianos permanecem as feridas que o ódio abriu e o tempo (ainda) não sanou. E é sobre essas, e sobre o seu papel na transição para a paz, que versa We Are Indestructible, o fotolivro do dinamarquês Mads Nissen, que resulta de 13 anos de trabalho realizado entre 2006 e 2019. Nós Somos Indestrutíveis, em tradução livre para português, é, nas palavras do autor, “um retrato de um país destruído pela guerra a navegar pelas complexidades de um novo estado de paz”.

“Nós [colombianos] já não somos capazes de sentir a dor dos outros”, disse o ex-presidente Juan Manuel Santos ao fotojornalista dinamarquês, em entrevista. “Perdemos a compaixão e, agora, precisamos de a recuperar para tornarmos a ser um país normal.” O Prémio Nobel da Paz e ex-ministro da defesa de Álvaro Uribe, conseguiu o que quase todos consideravam impossível. “Não me perdoaria se, no final da minha vida, tivesse oportunidade de trazer paz ao meu povo e não aproveitasse.” 

O acordo que gizou — e que FARC e governo assinaram, em 2016 — determina que os principais responsáveis pelo conflito sejam guerrilheiros, militares ou civis, não respondam perante a justiça desde que contem a verdade, indemnizem as vítimas e não voltem a recorrer à violência. E é este o ponto da discórdia para muitos colombianos, auscultados em referendo após a assinatura do acordo. Os que discordam reclamam que quem cometeu crimes ao abrigo deste conflito deve ser punido. Mas se Juan Manuel Santos tirou alguma lição deste complexo processo de transição foi que, ao contrário do que esperava, “são as vítimas as mais generosas, as mais abertas à reconciliação e ao perdão, as mais dispostas a avançar com o processo de paz”. 

Foto
Juan Manuel Santos, 65 anos, então presidente da Colômbia, no Palácio de Nariño, em Bogotá. Outubro de 2016. ©Mads Nissen

Mads Nissen esteve em contacto com todas as facções desta guerra, excepto com os grupos paramilitares de extrema-direita, que são actualmente, os mais violentos e activos no país. Ao contrário do seu legado fotográfico, Mads Nissen não é indestrutível. Correu perigo ao coleccionar estas histórias e duvida que tivesse sobrevivido ao contacto directo com a extrema-direita. “Uma busca simples no Google deixa claro que sou um defensor dos direitos humanos”, refere em entrevista telefónica.

O fotógrafo toca os vários mundos que coabitam dentro da fragmentada sociedade colombiana: desde o exército governamental (que Mads afirma ser de extrema-direita) e a guerrilha marxista-leninista das FARC, até aos 6,6 milhões de deslocados internos que vivem nos arredores das grandes cidades colombianas. Desde membros do poder político a simples produtores de cocaína ou marijuana, todos têm a sua voz registada no fotolivro do dinamarquês. Tenta, por isso, um veículo neutro, para oferecer ao leitor um retrato “isento” de um conflito que suscita, em tantos casos, acessos de parcialidade a quem com ele contacta.

Soacha, sul de Bogotá. Outubro de 2017 ©Mads Nissen
Pelotão número 51, num campo em local secreto, em Caquetá. Novembro de 2016 ©Mads Nissen
Guerrillheiras FARC Daniela, 32, Yuli, 26, e Nancy, 30, vivem o período de transição de soldado para civil num campo, em El Diamante. Outubro de 2016 ©Mads Nissen
Se o acordo de paz falhar, os pais de Sara Manuela, de dois anos, terão de entregá-la para adopção para continuarem a guerrilha. Campo FARC, El Diamante. Outubro de 2016 ©Mads Nissen
Miranda, distrito de Cauca, Abril de 2017 ©Mads Nissen
Sharid Popayan, de um ano de idade, é levada pela mãe ao funeral do pai, Alvaro Steven, que foi assassinado com quatro tiros, aos 20 anos. Soacha, sul de Bogotá, Novembro de 2016 ©Mads Nissen
Fotogaleria
Soacha, sul de Bogotá. Outubro de 2017 ©Mads Nissen

A Colômbia (ainda) é o principal produtor de cocaína do mundo. Apesar de o governo colombiano ter traçado um plano para a substituição dos cultivos, o país mantinha, em 2018, a “medalha” de maior exportador do mundo. O elevado grau de rentabilidade da produção de cocaína e marijuana mantém os agricultores presos a esse tipo de negócio. E, com o desligamento das FARC da colheita de taxas sobre esse tipo de produção (a receita era conduzida para o financiamento das suas actividades), outros grupos estão a entrar em cena e tentar extorquir novamente os produtores, nomeadamente os grupos paramilitares de extrema-direita, que não constam do acordo de paz que os forçaria, tal como as FARC, a entregar as armas.

Ou seja, apesar dos aparentes esforços para eliminar o problema do narcotráfico no país, não existe um fim à vista. “E a Europa e os Estados Unidos têm responsabilidade nesta matéria”, afirma o fotógrafo. Se a Colômbia é o maior produtor de cocaína, os europeus e norte-americanos são os maiores consumidores. “As pessoas gostam de se divertir e de consumir drogas, mas têm de compreender que esse consumo deixa um trilho de sangue, corrupção e pobreza.” 

Foto
Potrero Grande, Cali, Outubro de 2017. ©Mads Nissen

A coca, as FARC e a perpetuação de um problema

Jesús Antonio Yunda tem 31 anos e é produtor de cannabis e coca, em Miranda, a cerca de 400 quilómetros de Bogotá. Ao fotojornalista, o agricultor contou que a sua família produzia, originalmente, café, mas que uma praga destruiu a plantação motivo pelo qual foram forçados a mudar de cultivo. Após vários intentos falhados (laranja, tomate, erva para gado) que praticamente levaram o pai de Jesús à falência, não viram outra opção que não a plantação de coca. “O negócio cresceu. Foi a coca que nos salvou.” Há dois anos, começou a plantar marijuana e hoje tem milhares de plantas. “É um negócio mais rentável”, observa. Jesús gostaria de abandonar o cultivo de plantas ilegais, reconhece o efeito nefando do que produz sobre a sociedade, mas teme que a ajuda do governo colombiano falhe. “Se queimar as minhas plantas amanhã, de que é que vou viver até à primeira colheita do próximo cultivo? E se o governo não cumprir o que prometeu?” Aguarda. Afinal, tem duas filhas para alimentar.

Samir Ramirez Córdoba, de 21 anos, foi soldado de guerrilha das FARC. Quando conversou com Mads Nissen, em Maio de 2016, antes da assinatura do acordo de paz, não imaginava a sua vida sem uma arma. “Iria sentir-me despido sem ela”, confessou. Devido ao constante estado de alarme em que vivia, antes do acordo, não dava um passo sem o conforto proporcionado pelo porte de arma. “Mesmo no meio da selva, temos de estar constantemente alerta”, explicou. “Mesmo de noite.” Antes de se juntar à guerrilha, com 15 anos, Samir “até gostava da escola”. Gostava de aprender e, sobretudo, de ensinar. “Talvez me torne professor se o processo de paz prevalecer.” Juntou-se à guerrilha “porque as FARC ajudavam os agricultores, ao contrário dos paramilitares [da extrema-direita]”. “Tínhamos algo em comum.”

Mais de sete mil guerrilheiros das FARC entregaram as armas e passaram à condição de civis, “um pensamento assustador para muitos dos que lutaram nas fileiras desde a adolescência”, avalia o fotógrafo, com base nos testemunhos que recolheu. Hoje, o FARC é um partido político — que resulta uma contrapartida do acordo de paz. O acrónimo mantém-se, mas mudou o nome para Fuerza Alternativa Revolucionaria del Común.

Foto
©Mads Nissen

Em Abril de 2017, após a assinatura do acordo de paz, Samir ainda estava a habituar-se a viver sem uma arma. “Os primeiros dias foram muito estranhos. Habituei-me, com o passar dos dias. Mas, honestamente, ainda não me sinto seguro e, por isso, ainda a tenho comigo, na minha tenda.” No acampamento onde vivia com outros ex-FARC, os nervos estiveram “em franja”. “No outro dia, alguns membros dos paramilitares vieram fazer uma visita e mostraram-nos abertamente as suas armas”, narrou ao fotojornalista. “Pararam junto ao nosso posto de vigia para fazer selfies. Eu alistei-me na FARC porque tinha medo dos paramilitares. E agora eles andam novamente aí. Eles já cometeram massacres, são o nosso principal inimigo. Todos sonhamos voltar para as nossas famílias, mas e se eles vierem à minha procura? Para eles, eu serei sempre da guerrilha, é o que sou desde que era um miúdo.” Entretanto, Samir começou a receber formação para se tornar guarda-costas, à semelhança de muitos dos seus camaradas. “É isto que sabemos fazer, é aquilo que somos bons a fazer – ter armas.”

Logo após a assinatura do acordo, os guerrilheiros mudaram-se, temporariamente, para esconderijos monitorizados pelas Nações Unidas; só posteriormente voltaram às suas casas. “Um total de 17 contentores cheios de armas e munições foram secretamente destruídos”, refere o fotógrafo no interior do fotolivro. “Foi importante para eles que não parecesse que se renderam.”

“A desigualdade é o combustível da violência”

Apesar do acordo de paz, é nas favelas das periferias das grandes cidades, como Bogotá e Puente Nayero, que residem a maioria dos desplazados (refugiados internos). “A questão do roubo das terras, que conduziu a esta crise de desplazados, está bem documentada”, diz o fotógrafo ao P3. “E a conclusão é que a maior parte das terras foram roubadas e estão, hoje, nas mãos de muito poucos. A desigualdade é o combustível da violência. O conflito surge quando existe necessidade de silenciar aqueles que a denunciam.” 

Foto
À esquerda, Didiller Angulo, nove anos, brinca num bairro controlado por grupos armados, em Potrero Grande, Cali; à direita, o funeral do líder social indígena Gerson Acosta, de 35 anos. Fotografias de Abril de 2017 ©Mads Nissen

Jorge Ocoro Olave, de 46 anos, é líder social em Puente Nayero, Buenaventura — ou seja, é um defensor dos direitos humanos, um elemento mobilizador e agregador de comunidades, um protector e promotor dos direitos sociais de um ou vários grupos. Em entrevista a Mads Nissen, Jorge confessou temer, nos dias que correm, pela sua vida. A Colômbia não é um ambiente seguro para um líder social. “Inicialmente, éramos 25 líderes [naquela região]. Agora somos sete ou oito. Os restantes abandonaram esse papel ou foram assassinados.” Os grupos paramilitares associados à extrema-direita são a sua maior fonte de preocupação. E, desde que mataram Temistocles, em Janeiro de 2018, todos temem.

Em Abril de 2014, Jorge e a sua comunidade expulsaram todos os grupos armados do bairro e declararam-no Espaço Humanitário. “Já não aguentávamos mais”, desabafou. “No seio da nossa comunidade havia um grupo armado que tinha aquilo que chamávamos ‘o matadouro’. Ouvíamos barulhos do exterior, gritos. E depois — o silêncio. E de seguida, ‘blum’, para dentro de água. Era assim a qualquer hora do dia – fosse de manhã, de tarde ou de noite. Era indescritível. É uma impressão inapagável, permanente. Os gritos ficam contigo como uma tatuagem. Víamos pedaços de dedos em poças de sangue no chão, mas não podíamos fazer nada. Se nos envolvêssemos, eles também nos matariam.” Os grupos armados estavam bem munidos; os cidadãos comuns, de mãos atadas. “Um dia, os ruídos de gritos e de motosserras tornaram-se demasiado altos e decidimos criar o Espaço Humanitário. Decidimos unir-nos e preencher as ruas do nosso bairro e, com a ajuda da comunidade internacional, conseguimos expulsar os grupos armados. Agora, dentro do nosso bairro, as crianças podem brincar livremente e as pessoas podem estar fora de casa depois de escurecer. O silêncio e a paz que temos contrastam imensamente com o bairro que fica apenas a dois minutos de distância.”

Foto
Mauricio, de 20 anos, vive no mesmo bairro de Brian, em Potrero Grande, Cali. Foi libertado da prisão poucos dias antes deste retrato. A tatuagem de uma lágrima simboliza o homicídio que cometeu. Abril de 2017. ©Mads Nissen

Mas as ameaças ao Espaço Humanitário Puente Nayero existem, o que mantém os moradores em constante sobressalto. Jorge afirma que, na Colômbia, ainda basta uma pequena fagulha para desencadear uma acção violenta. “Se a música estiver muito alta e alguém não gostar, é possível que esse alguém apareça com uma arma e ameace outra pessoa até que a música pare. É assim que se resolvem os problemas por aqui.”

“A vida aqui é assim: guerra, guerra e mais guerra”

Brian está do lado oposto da barricada. Tem 23 anos e pertence a um gangue em Potrero Grande, em Cali, 300 quilómetros a este de Bogotá. “O bairro é um ponto nevrálgico”, afirma, em entrevista ao dinamarquês. “Diferentes grupos controlam diferentes territórios e não te podes mover entre blocos sem permissão. A vida aqui é assim: guerra, guerra e mais guerra.” Se alguém magoa ou ameaça alguém, terá vingança. Dessa vingança, surgirá nova desforra. E assim sucessivamente, num ciclo perpétuo de violência.

Da primeira vez que recebeu uma “encomenda”, Brian colheu “de presente” uma mota. “Quando és mais novo sonhas em ganhar o teu próprio dinheiro, para não teres de pedir à tua mãe. Ela irá dizer que não, de qualquer modo, porque também não tem dinheiro nenhum.” Da segunda vez que recebeu uma “encomenda”, ganhou dois milhões de pesos — o que correspondia, na altura, a cerca de 620 euros. “Às vezes tens de fazer coisas que não deves para conseguir sobreviver por aqui. Os paramilitares vêm ao bairro e recrutam os menores e oferecem-lhes dinheiro em troca do assassinato dos seus inimigos. Agora pagam menos de dois milhões de pesos por cada morte. Pode ser qualquer pessoa, um colega, um marido. Qualquer um. Normalmente recebemos um papel com um nome, um endereço e uma fotografia.” Mas está tudo ligado, afirma. “O dinheiro, os roubos, as drogas...”

Brian consome, diariamente, três tipos de droga: cocaína, marijuana e pepas (uma anfetamina alucinogénica popular entre os jovens colombianos). “Não tomo assim tantas drogas (…), só essas três. Mas, claro, preciso de pagar pelas minhas drogas e por isso é que roubo. Também preciso de pagar pelo meu almoço.” Para Brian, a comparação é natural. Quase todos os miúdos do bairro onde vive têm armas. “Se eu não tivesse uma, nem estaria vivo por esta altura”, constata.

“Apesar de todo o sofrimento, os colombianos rejeitaram o acordo”, refere Mads Nissen, remetendo para o referendo que decorreu a 7 de Outubro de 2016, quando mais de 50% dos que votaram o fizeram contra o acordo de paz. Em Novembro, o documento sofreu alterações e, desde então, o seu esqueleto permanece intacto. “Então, o que aconteceu? Foram as exigências políticas inaceitáveis para a elite? Ou estarão os sentimentos de ódio ainda demasiado frescos e a confiança ainda demasiado tremida?” Certo é que, para o fotógrafo, a conclusão parece óbvia: por ora, “a paz foi conseguida apenas no papel e só nos próximos anos o seu verdadeiro valor poderá ser determinado”.

Há ainda, a seu ver, muitas conquistas por lograr. “Desde o acordo, inúmeros ex-guerrilheiros das FARC e quase 300 líderes sociais e activistas pelos direitos humanos foram assassinados; milhões de desplazados ainda não reaviram as propriedades de que foram expropriados. Também os grandes desafios sociais continuam por resolver: a Colômbia continua entre os dez países mais desiguais do mundo, dois terços da área cultivável continuam nas mãos de apenas 0,4% das empresas agrícolas.” E as plantas de coca, conclui, “florescem como nunca.”

Sugerir correcção
Comentar