Compraram um terreno para fazer dele uma reserva natural nos arredores de Coimbra
Associação Milvoz nasceu neste ano, lançou campanha de recolha de fundos e adquiriu encosta com mancha de folhosas em Almalaguês. E não quer parar por aqui.
A encosta é íngreme e a chuva que sobre ela caiu durante a manhã não ajuda. No entanto, o piso escorregadio não demoveu o grupo de cerca de 15 pessoas que se tinha juntado no topo do monte da Senhora da Alegria, junto à capela setecentista que dá nome ao lugar dos arredores de Almalaguês, uma freguesia de Coimbra.
O ponto de encontro dos voluntários tinha sido marcado para o início de uma tarde de sábado que prometia uma pausa no mau tempo. Seria aquele o “dia zero” da bio-reserva da Senhora da Alegria, um projecto que nasceu da vontade de um grupo de 12 amigos que se organizou. Milvoz – Associação de Protecção e Conservação da Natureza foi criada em Maio de 2019, com o objectivo de criar uma rede de bio-reservas. A primeira, que se estende por menos de um hectare, situa-se em Almalaguês, a pouco mais de 15 quilómetros de Coimbra.
De indumentária impermeável dos pés ao pescoço e mochila a tiracolo, Manuel Malva começa por explicar ao grupo a ordem de trabalhos e as características do local. É ele, estudante de biologia da Universidade de Coimbra e fotógrafo de natureza, o presidente da Associação Milvoz. O previsto era colocar caixas ninho para pássaros, instalar um charco para anfíbios, recuperar um socalco invadido por um silvado e colocar de um painel interpretativo à entrada da reserva. Mas a chuva que só parou pelas 15h00 e o curto sábado de Outono acabaram por frustrar parte do plano.
Mas para perceber este projecto, é preciso regressar a Julho de 2019, quando terminou a campanha de recolha de fundos lançada pela Milvoz. O objectivo era juntar três mil euros para comprar o terreno da Senhora da Alegria, montante que foi ultrapassado. A aquisição de um terreno permitia “conservar a floresta, preservar habitats e utilizar esses espaços para desenvolver educação ambiental”, descreve Manuel Malva ao PÚBLICO. Mas também “ajudar as pessoas a compreender melhor a natureza que as rodeia e a necessidade de a preservar”, acrescenta.
Por isso, o terreno teria que cumprir alguns requisitos: “alguma proximidade à cidade, para que as pessoas consigam deslocar-se com relativa facilidade; uma floresta nativa que nos permitisse ter uma boa base de trabalho, mas que também tivesse alguns desafios em termos de conservação”. E se a encosta da Senhora da Alegria é maioritariamente composta por folhosas, na parte cimeira erguem-se copas de eucaliptos acima da mancha dominada por carvalhos alvarinhos e castanheiros. “Até na envolvente da reserva temos uma zona fortemente eucaliptada”, descreve. Como a maioria do grupo que deu origem à Milvoz é da zona de Coimbra, a escolha acabou por ser aquela encosta virada a Norte.
“Eu sou de Assafarge (freguesia vizinha) e um dia vim parar aqui. Mal cheguei, percebi que era um sítio com muito valor em termos de biodiversidade”, conta Manuel que resume várias explicações para que aquela mancha de floresta autóctone tenha sobrevivido, mesmo rodeada por eucaliptos, pinheiros bravos e terrenos agrícolas: o declive acentuado, a proximidade a um local religioso e a vegetação pouco propícia a fogos florestais.
Esta última teoria foi posta à prova em Setembro deste ano, quando um incêndio consumiu muitos dos terrenos agrícolas e florestais circundantes e chegou a entrar no reserva. “Foi notória a diminuição repentina da intensidade do fogo quando chegou à parte das folhosas” de crescimento lento, refere. Caso contrário, os ramos a baldes que utilizaram ao fundo da encosta, junto ao ribeiro que ali corre, para combater as chamas, pouca diferença teriam feito. Nisto, aponta para uma aveleira, com parte das folhas secas pelo fogo, mas que visivelmente não foi consumida. “Na próxima Primavera vai rebentar”, prevê.
Alargar o terreno e a rede
Se a maioria dos elementos da associação é da região de Coimbra, o apoio ao projecto não se fica pelas redondezas. Nélson Ribau, de 30 anos, explica que já tinha contribuído para a campanha de recolha de fundos e foi de perto de Ílhavo para Almalaguês, no último sábado, para participar nos trabalhos iniciais da reserva. Com ele levou a mãe, Lígia. “Interesso-me por projectos de conservação da natureza. Parece-me importante preservar estes espaços, onde ainda não houve intervenção negativa” do homem, explica, enquanto, ao lado, quatro enxadas vão mudando de braços para abrir o charco para anfíbios.
O charco artificial de dois metros por três é apenas um pequeno ponto para alavancar a fauna da Senhora da Alegria, que já de si é diversa, explica Manuel. “ Temos mais de 70 espécies de aves inventariadas, entre residentes e migratórias, e algumas pessoas não fazem ideia que aqui, às portas da cidade, já temos veados, corsos, javalis, raposas ou ginetas”, enumera. A lista continua. Na classe dos anfíbios, verifica-se a presença de “endemismos da Península Ibérica, como a salamandra-lusitânica, a rã ibérica, o lagarto-d'água ou o tritão-de-ventre-laranja”.
Ao início da tarde, à medida que o grupo vai descendo a encosta, Manuel vai fazendo a apresentação da reserva e da sua flora. Para além do carvalho e do castanheiro, há também sobreiros, adernos, medronheiros e loureiros, entre outras espécies. Miguel Padilha, o vice-presidente da Milvoz, que também vive nas redondezas, conta que o trilho principal que rasga o monte, era utilizado pelas gentes de Almalaguês em romarias à capela da Senhora da Alegria, embora seja difícil imaginar um andor trepar por ali acima.
Um dos trabalhos de gestão da reserva deverá passar também pela criação de um trilho circular. Por agora, são os javalis que vão criando os seus. Estão igualmente a decorrer conversações com proprietários de terrenos vizinhos para que a associação passe a gerir uma maior área da encosta. Simultaneamente, estão de olho noutros terrenos que permitam criar a rede de mini-reservas. “Em 2020, queremos avançar com outro núcleo”, anuncia o presidente da associação.