Rebeldes com uma “causa”

Muita coisa mudou na relação entre homens e mulheres. Mas muitas coisas essenciais, vitais, permanecem, hoje como ontem.

Não, não venho maçar ninguém com as averiguações e especulações dos chamados “estudos de género”, um território disciplinar que não me interessa, que ignoro e tenciono continuar a ignorar. Trata-se de um território fértil em fanatismos ridículos, que a meu ver só prejudicam a “causa do feminismo”: o ridículo mata. 

Mas o feminismo, tal como eu o assimilei nos finais dos anos sessenta do século XX, permanece uma “causa”, e com muito justificadas razões. Muita coisa mudou na relação entre homens e mulheres; muita coisa mudou no papel social da mulher; muita coisa mudou na maneira como as mulheres se vêem a si próprias. Mas muitas coisas essenciais, vitais, permanecem, hoje como ontem: as disparidades salariais, as disparidades físicas e as disparidades eróticas e sexuais. As primeiras são generalizadamente reconhecidas, mas nem por isso cessou a prática de pagar menos às mulheres pelo simples facto de serem ou poderem vir a ser mães: baixas prolongadas depois do parto, faltas mais frequentes para levar as crias ao médico, etc.. (Os homens que gozam de férias de parto são atípicos e raríssimos.) As mulheres são penalizadas pelo simples facto de que a biologia as determina como agentes da reprodução humana, ponto. A injustiça é descarnada e gritante, mas não me consta que partidos e, sobretudo, sindicatos façam do caso uma bandeira de batalha. As vagas alusões ao facto são como uma espécie de refrão ou nota de rodapé obrigatórios. No meio de tantas manifestações a propósito de tudo e de nada, não me lembro de nenhuma greve que colocasse no centro das reivindicações a desigualdade salarial entre os sexos. É lamentável.

Tenho um sonho: assistir, antes de morrer, a uma greve geral das mulheres tanto ao trabalho profissional como ao trabalho doméstico. Sonho absurdo, claro, pois a maioria dos maridos se oporia terminantemente a uma tal audácia. E daqui passamos às decisivas disparidades físicas. Decisivas, sim. Em princípio e geralmente, quem manda é o homem, o pater familias. Acontece que este softpower se transmuta facilmente em hardpower não só quando enfrenta resistência, mas também quando o pater chega a casa enciumado, irritado ou frustrado e resolve descarregar a sua fúria sobre a pobre mater – quando não sobre a inocente criançada de forma violenta. Aqui começam as bofetadas, os pontapés, os empurrões e, num extraordinário número de casos, a facada, o tiro de caçadeira ou revólver. Este ano já foram assim assassinadas umas trinta mulheres; não sabemos quantas foram espancadas, porque muitas delas escondem, compreensivelmente, a humilhação suprema. A violência doméstica, sob a forma de assassínio, está a aumentar ou está apenas a ser mais publicitada? Não sei: em Novembro de 2005, a violência doméstica já tinha morto 33 mulheres em Portugal (PÚBLICO, 25.11.05) – “Foram alvejadas a pistola ou caçadeira, golpeadas com faca ou machado, mortas à vassourada, à paulada, ao murro ou pontapé.”

Há muitas, demasiadas mulheres necessitadas de protecção, mas entre as quatro paredes de uma casa não há Lei ou Instituição que lhes possa valer. Têm, portanto, de se defender a si mesmas. Não podem esperar que o machismo se extinga lá para o ano 3000. O machismo violento alimenta-se da superioridade física do homem e da inferioridade física da mulher. Só me ocorre um remédio: ensinar às raparigas, desde os bancos da escola até ao final do liceu, artes marciais. Deveriam ser uma cadeira obrigatória! Seriam infinitamente mais úteis do que o salto à barra ou qualquer outro tipo de ginástica. Seriam uma forma efectiva e eficaz de dar poder ao sexo fisicamente mais fraco. Dariam às mulheres mais poder e mais força; dar-lhes-iam poder alicerçado em força, já que a força bruta é em última análise o respaldo de todos os poderes. Se algum governo tivesse a imaginação e a coragem de introduzir uma cadeira obrigatória de artes marciais, não tenho uma dúvida de que o risco da bofetada, do empurrão, da agressão diminuiria drasticamente: o macho pensaria três vezes antes de levantar o punho. Todas as prédicas e pedagogias anti-machistas juntas e somadas são ineficazes para travar ou anular a violência masculina, que não escolhe classe social: do operário ao camponês, do médico ao empresário, a bofetada é sempre uma virtualidade que paira por ali.

Em terceiro lugar, o que chamei disparidades eróticas e sexuais são talvez as mais enraizadas e as mais difíceis de articular e, creio, impossíveis de erradicar. Quase todos os dias, sobretudo nos restaurantes e hotéis, me cruzo com homens já bem entrados na idade, feios e barrigudos, acompanhados por mulheres jovens, elegantes e bonitas. Para mim, isto é um mistério: os homens, velhos ou meio velhos, carecas, de barba rala e mal aparada, baixotes e até disformes, arranjam sempre mulheres juvenis de que poderiam ser pais, mas de que são (ou aparentam ser) amantes. O que terão de tão atraente? Dinheiro e poder? Certamente. Mas só dinheiro e poder? Nem sempre. Já existem muitas mulheres com dinheiro e poder, sem que isso lhes garanta a posse de um efebo belo, culto e inteligente. Será necessidade de estatuto e protecção? Talvez. Em qualquer dos casos, a inferioridade e a insegurança das mulheres torna-se patente. O cerne desta inferioridade (e insegurança) parece-me residir, antes de mais, na falta de exigência estético-erótica das mulheres. Só elas têm que ser belas, podendo eles ser medonhos? Aparentemente, sim. A sociedade aprova esta tremenda disparidade. A indiscriminação estético-erótica das mulheres constitui um sinal da sua (voluntária ou inevitável?) submissão.

Tudo isto é muito mais complexo e remete para as profundezas antropológicas das mulheres e dos homens. Balzac explicou: uma das suas personagens, a duquesa de Langeais, eximindo-se a ser possuída pelo seu apaixonado, mergulhava este no mais negro e fundo desespero. Exausto de desejo e torturado pela frustração, o marquês de Montriveaux – assim se chamava o infeliz desabafa: “Senhora duquesa: desespera-me que Deus não tenha inventado para a mulher outra maneira de confirmar a entrega do seu corpo que não seja acrescentar a essa, a entrega da sua pessoa.” Ao que a duquesa replica: “Senhor marquês: desespera-me que Deus não tenha inventado para o homem uma maneira mais nobre de confirmar a entrega do seu coração, a não ser a manifestação de desejos prodigiosamente vulgares.” [1]

Muitas mulheres, por razões que não há o direito de julgar, colaboram com esta vulgaridade. Mas tal colaboração, que nem reprovo nem critico, é sinal inequívoco de uma irremediável subalternidade feminina. Temos muito que andar até sermos crescidinhas: rebels with a cause.

[1] Honoré de Balzac, La duchesse de Lamgeais, ed. GF Flammarion, 2008, p. 120

Sugerir correcção
Ler 26 comentários