O que nasceu na rua
Esta solidão extrema numa cidade cheia de gente, centenas de milhares, é um grito terrível. Faz as lágrimas agitarem-se no fundo do lençol onde estão.
Por mera ignorância, não sei como as mulheres, no tempo do nomadismo, pariam.
Sei que há mais de sessenta anos as mulheres de Amorim que trabalhavam na lavoura pariam e muitas vezes “perdiam” os filhos.
A razão de ciência decorre do facto de o meu vizinho, o Rafael, que era o sapateiro da aldeia, ter na oficina muitas caixas que traziam as formas para guiá-lo na arquitetura do sapato.
Acontecia que as mulheres estavam a trabalhar e, às vezes, davam conta que o que elas traziam no ventre tinha de sair.
Se havia tempo de chegar a casa, chegavam. Se não havia, não. As que chegavam a casa poderiam ter tempo de chamar a Tia Alice, e se ela estivesse em condições de se montar na carroça ou na bicicleta de quem a ia chamar, vinha.
Quando não podia vir a mulher ficava desamparada, como a mãe de Jesus deitada nas palhas, e seria o que Deus quisesse.
Às vezes a família da mãe tinha de ir pedir ao Rafael uma caixa e metia-o lá dentro, frio e já quase roxo. Então dava-o ao homem e este ia ao cemitério e fazia uma cova pequena e metia lá a caixa.
Não havia sinos a tocarem, nem de alegria, nem de tristeza. O morto, dizia-se, não tinha alma por não ter sido batizado. E tudo voltava à mais quieta normalidade.
Os homens e as mulheres continuavam a fazer filhos. Muitos filhos, porque viriam a ser o sustento da casa e da velhice de quem os gerara. Entre muitos algum haveria de ter a sopa para os velhos.
As mulheres que assim pariam faziam o que aprendiam a fazer. Só sabiam que tinham de trabalhar e ter filhos. E a vida era trabalho e filhos e algum divertimento quando chegava o Natal e a Festa de Santo António.
As mulheres, mesmo quando tinham os filhos nos campos ou onde calhasse, não estavam sozinhas. O homem e os filhos aguardavam em casa ou num quarto à espera.
Eu lembro-me desses dias porque achava que a minha mãe e o meu pai já tinham muitos filhos e eu não queria mais irmãos. Era o que eu sentia quando via a Tia Alice chegar. Saíam do quarto contentes e eu ficava triste.
As mulheres que tinham os filhos no meio dos campos não escondiam os filhos que tinham. Elas tinham sempre gente com elas para as ajudar. Ou, se não estavam ali, estavam em casa ou em toda a aldeia.
A rapariga/mulher que deu à luz numa rua de Lisboa não tinha casa, nem tinha aldeia; apenas uma rua onde havia contentores.
Só que entre aquela pobreza e esta pobreza já vão muitos anos, mais de sessenta. Nenhuma delas é boa, a pobreza é muito má em qualquer circunstância. Mas há uma diferença entre uma e outra – esta solidão extrema numa cidade cheia de gente, centenas de milhares, é um grito terrível. Faz as lágrimas agitarem-se no fundo do lençol onde estão.
Durante uns dias, a sociedade agita as consciências e os apelos à bondade sucedem-se. Depois volta tudo ao normal.
E em 2020 as ruas continuarão a ser o abrigo de quem não o tem. Os turistas dos cruzeiros atirarão o seu lixo para os contentores onde a mãe pôs o seu filho recém-nascido.
O autor escreve segundo o novo Acordo Ortográfico