Sem Estado, não há startups
As startups são projectos da iniciativa privada, mas sem o Estado não existiam. Nem nos EUA, nem em Portugal.
Na “carta ao meu país”, o jovem Manuel Bourbon Ribeiro cita São Tomás de Aquino para dizer que “o principal intuito do Estado deve ser o bem viver das pessoas”.
Parece uma evidência inocente, mas muitos dos que comentaram o texto foram directos à ideia que alimenta parte da direita: um leitor falou da “teta do Estado”, outro disse que Portugal “só serve para se ser escravo dos impostos” e outro disse que o Estado “castiga a iniciativa privada”.
Como estamos em semana de Web Summit, fui ver quanto dinheiro o Estado português investe em startups, por definição projectos da “iniciativa privada”.
Não queria repetir Mariana Mazzucato, especialista em Economia da Inovação. Numa entrevista ao PÚBLICO, ela diz que “todas as grandes inovações recentes” — dos carros sem condutor à tecnologia de armazenamento de bateria — “vieram do Estado”. “O que seria da Google sem a Internet e sem o GPS? Nada.”
Basta dar um passo atrás. Quem inventou a Internet? Cientistas da Defesa norte-americana. Quem inventou o GPS? Cientistas financiados pela Marinha norte-americana e pela NASA. Que ideia essencial usa o GPS? A teoria da relatividade de Albert Einstein, sem a qual o GPS teria um erro de 11,2 quilómetros. Quem financiou Einstein durante anos? O Instituto de Estudos Avançados de Princeton. Quem financia hoje muita dessa investigação? Agências da Administração Trump.
Foi financiamento do Estado que pagou a investigação que permitiu à Apple inventar os seus melhores produtos; a tecnologia touch-screen baseou-se em investigação feita em laboratórios financiados pelo governo americano nos anos 1960 e 1970; foi com fundos do Estado que dois cientistas europeus descobriram a magnetorresistência gigante (que lhes valeu o Prémio Nobel da Física 2007) — Steve Jobs disse que “foi isso que tornou o iPod possível”. Mazzucato vai mais longe: “Tudo o que é inteligente no iPhone foi financiado pelo Governo.” Isto é o que toda a gente sabe.
Como é em Portugal?
Sendo muito diferente, é muito igual. O Estado tem um papel fundamental no “ecossistema” onde nascem as startups. Isso vai do INESC TEC (Porto) ao Hub Criativo do Beato (Lisboa), que não financiam com cash, aos milhões investidos a fundo perdido nas startups.
A formação dos engenheiros do Instituto Superior Técnico de Lisboa custa 70 milhões de euros por ano, dos quais 50 milhões vêm do Orçamento do Estado. Noutra escala, mas com a mesma lógica, o MIT recebe “dezenas de milhares de milhões” de fundos federais de 26 agências do Estado.
Quando criam uma startup, os jovens inovadores podem candidatar-se a vários fundos estatais:
— O comissário europeu Carlos Moedas e o ministro da Economia e Transição Digital, Pedro Siza Vieira, acabam de anunciar o investimento num novo fundo de 30 milhões para startups cujos modelos de negócio assentem em dados digitais. Do lado do Estado português, o capital é da Instituição Financeira de Desenvolvimento (IFD), criada pelo Governo de Passos Coelho, e que tem 100 milhões de capital social e como único accionista o Estado. Também foi a IFD que em 2016 abriu um concurso para uma linha de financiamento a Business Angels, que financiam as startups.
— Há anos que o IAPMEI apoia startups. É o IAPMEI que, com os nossos impostos, gere os programas StartUP Visa e StartUP Voucher, ambos parte da StartUP Portugal – Estratégia Nacional para o Empreendedorismo, lançada em 2016.
— A StartUP Voucher existe para apoiar “projectos empresariais em fase de ideia, promovidos por jovens entre os 18 e os 35 anos”. Os escolhidos podem receber, durante 12 meses, uma ou duas bolsas mensais de 691 euros cada “para desenvolvimento do projecto empresarial”. Além de “mentores”, há dois “prémios de avaliação intermédia” (1500 euros cada) aos projectos “com avaliação intercalar positiva em função do cumprimento dos objectivos” e um “prémio de concretização” de 2000 euros se, no fim, nascer uma empresa. São 21.584 euros a fundo perdido para jovens com uma boa ideia. Manel, não se preocupe: é tudo sem IRS.
— É também o IAPMEI que tem o programa de Sistema de Incentivos ao Empreendedorismo Qualificado e Criativo para PME com menos de dois anos e que atribui um Incentivo Não Reembolsável até 7500 euros às startups que precisam de uma incubadora.
— Em 2018, o Governo criou o programa 200M-Co-Invest With the Best, no qual o Estado investe metade dos 200 milhões de euros do capital de risco.
— Mas desde 2013, a Portugal Ventures (PV) já investiu 140 milhões em 110 novas startups. A PV é um instrumento do Estado tutelado pelo Ministério da Economia e gere 18 fundos (com dinheiro público e privado). 80% do seu capital social (40 milhões) é público. Qual seria a startup da área de live science que um privado estaria disposto a financiar, quando em regra precisam de dez anos para estarem prontas para entrar no mercado? A PV tem 16 no portfolio. Para um valor global teríamos de recuar a 1989, quando Cavaco Silva criou a InovCapital, embrião da PV.
— E, às vezes, quem financia as empresas de capital de risco que investem nas startups é o próprio Estado. Como a Armilar Ventures (ex-Espírito Santo Ventures), que é em parte financiada pelo Fundo Europeu de Investimento. Exacto: dinheiro dos nossos impostos.
Dois terços do crescimento económico na Europa são atribuídos à investigação e à inovação. Quem paga, há séculos, a investigação e a inovação? O Estado.