Ney feérico num espectáculo de uma beleza inquietante
Sempre atento aos sinais, Ney Matogrosso tem em Bloco na Rua um espectáculo de enorme força musical e plástica, um manifesto sonoro de uma beleza inquietante.
Já é quase uma banalidade dizê-lo, mas Ney Matogrosso cuida dos seus espectáculos tão ao pormenor, coloca sempre a fasquia tão alta, que não corre o risco de decepcionar o seu público. Pelo contrário: quase sempre o surpreende. Bloco na Rua, sucessor de Atento Aos Sinais, assume particular significado no tempo presente (muitos dos temas, ainda que datados de outras eras, parecem falar do Brasil e do mundo de hoje) e, da forma como foi concebido, é de enorme força musical e plástica. Ney, indiferente ao avanço dos anos (tem 78), mostra-se em grande forma física e vocal e a sua presença, sedutora e hipnótica, é de uma envolvência ímpar. Mas tudo o resto em Bloco na Rua é de extrema eficácia e precisão: os efeitos visuais (oportuníssimos, e bem escolhidos, os vídeos projectados no grande ecrã que ocupa o fundo do palco), as luzes e os músicos, autêntica máquina sonora de grande precisão e qualidade, com Sacha Amback (direcção musical e teclados), Marcos Suzano e Felipe Roseno (percussões), Dunga (baixo), Maurício Negão (guitarra), Aquiles Moraes (trompete) e Everson Moraes (trombone).
E há o alinhamento, que Ney estabeleceu à décima escolha, com tempo e calma (como disse, em entrevista, ao PÚBLICO), e resulta plenamente num discurso lógico e pleno de sentido, fazendo deste espectáculo um manifesto sonoro de uma beleza inquietante. O arranque, com Eu quero é botar meu bloco na rua (de Sérgio Sampaio) e Jardins da Babilónia (de Lee Marcucci e Rita Lee), é fortíssimo. Ney entra no palco com um traje que não mudará até ao final, aparentando um lagarto de silhueta humana, ainda com o rosto oculto, que ele descobre com um fecho éclair antes de começar a cantar.
O beco (de Bi Ribeiro e Herbert Vianna, Paralamas do Sucesso) completou depois a trilogia inicial, enquanto no ecrã se via uma colagem das cenas da explosão final do filme Zabriskie Point (1970), de Antonioni, e Ney cantava, no meio do caos visual: “No beco escuro explode a violência/ Eu tava preparado”. Álcool (bolero filosófico), de DJ Dolores (da banda sonora do filme Tatuagem) antecedeu Já sei (Alzira Espíndola), um comentário irónico para quem, hoje como em qualquer época, demora a entender o que se passa à sua volta: “Já sei como fazer pra te dizer/ O que quero dizer/ Vou cantar em inglês/ Pra você entender/ (…)/ If you know portuguese/ You know/ What’s this.”
Depois veio o já familiar Pavão misterioso (Ednardo), seguido de Tua cantiga (a canção de Chico Buarque que tanta polémica injustamente causou), que Ney finalizou num gesto teatral, prostrado, sob um foco de luz azul. A seguir, outros amores: A maçã (Raul Seixas), Iolanda (parceria de Chico Buarque com Pablo Milanés), Postal de amor e Ponta do lápis (ambas do trabalho de Ney com Fagner), esta última aproveitada para fazer uma ponte com outras coisas sérias: enquanto se ouvia “terra a terra/ chão a chão”, o ecrã mostrava monumentos aztecas, Machu Picchu e índios brasileiros. Depois? Uma oportunidade para recordar que, neste mundo, Tem gente com fome (Solano Trindade).
Já a caminho do fim, a relação com o palco e com a Terra: Corista de rock (Rita Lee) – “O que eu era ou sou por enquanto/ É tudo aquilo que eu digo e canto/ Com um pouco de espanto/ Num palco ou num canto” –, Já que tem que (Itamar Assunção), O último dia (Paulinho Moska) e a inédita Inominável (de Dan Nakagawa, cantor e actor nipo-brasileiro, que Ney já o cantara nos espectáculos Inclassificáveis (2007, com Um pouco de calor) e Atento aos sinais (2013 a 2018, com Todo mundo o tempo todo). O final fez-se com Sangue latino, um clássico intemporal dos primordiais Secos & Molhados.
Com o Coliseu de Lisboa esgotado, a insistência do público proporcionou ainda dois encores. Um, já premeditado, serviu como “discurso” lúcido sobre os dias de hoje, e incluiu Como 2 e 2, de Caetano Veloso (“Tudo em volta está deserto tudo certo/ Tudo certo como dois e dois são cinco”) Coração civil, de Milton Nascimento e Fernando Brant (“Sem polícia, nem a milícia, nem feitiço, cadê poder?/ Viva a preguiça, viva a malícia que só a gente é que sabe ter/ Assim dizendo a minha utopia eu vou levando a vida/ Eu vou viver bem melhor/ Doido pra ver o meu sonho teimoso, um dia se realizar”) e Mulher barriguda, outro tema do primeiro disco dos Secos & Molhados, tão actual hoje como em 1973 (“Mulher barriguda que vai ter menino/ Qual o destino que ele vai ter?/ Que será ele quando crescer?/ Haverá guerra ainda?/ Tomara que não”).
O segundo (e inesperado, mas muito bem-vindo) encore trouxe um tema não anunciado. “Uma surpresa que eu botei no show aqui”, disse Ney. E cantou Poema (de Agenor Neto e Roberto Frejat), que ele gravou no disco Olhos de Farol (1998). Um alerta que ao mesmo tempo tenta reconciliar-nos com o mundo, por via da arte. “De repente a gente vê que perdeu/ Ou está perdendo alguma coisa/ Morna e ingênua/ Que vai ficando no caminho/ Que é escuro e frio mas também bonito/ Porque é iluminado/ Pela beleza do que aconteceu/ Há minutos atrás.” É verdade, a poesia é uma coisa séria. Antes fosse ela dominante no mundo, e não a arrogância estúpida dos fanáticos.
Correcção: Por lapso, escreveu-se que Ney Matogrosso tem 77 anos, quando tem 78 (nasceu em 1 de Agosto de 1941). Obrigado ao leitor Gustavo Ribeiro, pelo alerta.