Teresa Salgueiro: “A alegria é um direito que todos devíamos ter”
Teresa Salgueiro queria cantar a felicidade e encontrou a alegria num poema de Saramago. É ela que dá o mote aos seus concertos no Misty Fest, esta segunda-feira no Porto, na Casa da Música, e terça-feira em Lisboa, no CCB.
Ao fim de doze anos a solo, após ter sido a voz dos anos de ouro dos Madredeus, Teresa Salgueiro fez uma música que exprimia felicidade e andava à procura de uma letra para ela. Até que leu Alegria, um poema de José Saramago [do livro Provavelmente Alegria, de 1970], e acabou por encontrar ali a solução. “Andava à volta da melodia, com a ideia de escrever alguma coisa sobre a felicidade, aquele sentimento que às vezes nos invade”, diz a cantora ao PÚBLICO. Estava a ler poemas e de repente li esse, que não conhecia. Adorei o poema, resolvi experimentá-lo na melodia e funcionou. Então acabei por criar o resto da melodia em função do poema e fiquei muito feliz com isso. Porque se o tema que eu tinha, aquela música, já queria transmitir a ideia de felicidade, alegria acabou por ser uma palavra melhor. Porque a alegria está presente em muitas coisas tão pequenas do dia-a-dia.”
A criação deste tema acabou por ser marcada por uma série de coincidências: “O poema ficou concluído perto do concerto que fiz no ano passado em Guadalajara, por ocasião da feira do livro. Sabia que ia lá estar presente a Pilar del Río, que admiro há muitos anos, mas só conheci pessoalmente durante a campanha presidencial de Sampaio da Nóvoa e ficámos amigas; e pensei que seria bom concluir o tema (desafiei os músicos e fizemos juntos o arranjo) e estreá-lo nesse concerto, como surpresa para a Pilar.” Feita a surpresa, recebida com muito agrado, ficou a ideia de gravar o tema. “E gravei-o. E ele acabou por dar o mote a este concerto, num momento em que estou a arranjar espaço físico e mental para fazer um novo disco. Enquanto isso não acontece, achei que seria interessante fazer um concerto onde faço um pouco uma retrospectiva do que têm sido estes 12 anos.”
Um direito e também um dever
O tema deu origem a um videoclipe onde participaram 44 personalidades de diversas áreas (Pilar del Río é uma delas), como uma espécie de manifesto onde a tag #alegria surge num cartaz empunhado à vez pelos participantes. “Foi um esforço titânico, da equipa de produção. Foi e não foi, porque as pessoas foram de uma grande generosidade, tal como a Fundação Saramago, que nos foi recebendo durante vários dias. Muitas pessoas disseram que sim, outras não podiam (e por isso não estão), mas eu senti-me muito acarinhada.”
Trata-se de fazer de alegria em tempos de turbulência social e política, à escala mundial, mas também de firmar uma atitude e um reconhecimento. “Poder fazer música ao longo de tantos anos é uma alegria enorme”, diz Teresa Salgueiro. “A música preenche-me, a música e a poesia, e só o facto de ela me permitir conhecer outras culturas e a quantidade enorme de pessoas com quem trabalhei, só isso já é um factor de alegria profunda.”
E há, a par disso, as turbulências do mundo. “Estes tempos são, de facto, de grandes mudanças, e muito aceleradas, para novos tipos de comunicação, de pensamento. Cada vez há mais conflitos, muitas perdas de liberdade, muitas quebras de direitos, há pouca assunção dos direitos humanos e inclusivamente dos deveres, que é uma coisa que eu acho extraordinária. Porque a alegria é um direito que todos devíamos ter. A alegria de fruirmos a vida como ela é. Só o simples facto de sairmos à rua, olharmos para o céu, admirarmos a natureza, termos com quem falar, tudo isso é factor de uma alegria profunda. E há muita gente que não tem oportunidade de viver assim, porque a desigualdade é cada vez maior, as pessoas têm de fugir de conflitos enormes, assistimos à instauração de regimes que não permitem que as pessoas se expressem com liberdade. A alegria é um direito, mas é também um dever, que nós temos de proporcionar ao próximo.”
E isso, diz Teresa, vai ao encontro de uma ideia expressa por José Saramago em 1998, quando recebeu o Nobel da Literatura, e que deu origem à Carta Universal dos Deveres e Obrigações dos Seres Humanos, apresentada nas Nações Unidas no final do ano passado. “E que é uma ideia fundamental, uma coisa em que eu pensava há muito tempo: nós temos a obrigação de zelar pelos direitos humanos. Se não zelarmos por eles, acabam por se perder.” O momento actual, diz ela, é de “equilíbrio muito frágil”: “E há muitas formas de lutar contra as quebras de direitos, há que denunciar, há que estar alerta, há que falar; mas também podemos, de forma veemente, erguer uma espécie de muro de alegria para dizer que a vida também pode e deve ser isto, que temos de procurar, para nós e para todos, um mundo onde possamos fazer parte deste ecossistema que nos sustenta e que também está em perigo (que também nós pomos em perigo) e que devíamos acarinhar.”
Um repertório bastante ecléctico
Nos concertos do Misty Fest, esta segunda-feira no Porto, na Casa da Música, e terça-feira em Lisboa, no Centro Cultural de Belém (sempre às 21h), Teresa Salgueiro terá consigo José Peixoto na guitarra, Fábio Palma no acordeão, Óscar Torres no contrabaixo e Rui Lobato na bateria, percussão e guitarra. “É um belo quarteto. São músicos que eu muito estimo e admiro, cada um no seu estilo e com o seu contributo muito particular. Vou apresentar um repertório bastante ecléctico, porque este concerto são os 12 anos da minha independência enquanto intérprete e, a partir de 2012, também enquanto autora da música e das palavras que canto. É um repertório que contém alguns dos meus temas e também arranjos novos para outros temas que foram adaptados para esta instrumentação, mais acústica (por exemplo, os temas do álbum Mistério tinham guitarras eléctricas), e também para temas que fui cantando ao longo dos anos e que tive vontade de voltar a cantar.”