Um “passe social” para a Cultura
No programa do Governo que agora inicia funções, de tantas vezes se “repensar a Cultura”, parece que a imaginação se esgotou. E nada se diz quanto àquela que poderia ser a mais eficaz medida de promoção da cidadania cultural.
Em entrevista publicada neste jornal, a directora do Mosteiro dos Jerónimos e da Torre de Belém advogou bilhetes mais baratos para os portugueses, naqueles monumentos pelo menos. Houve quem aplaudisse e chamasse a atenção para casos ainda mais escandalosos, como os de Serralves ou da Parques de Sintra, empresas de capitais públicos que, pelos preços praticados (mesmo aos domingos de manhã, ou seja, em desafio da norma estabelecida pelo anterior Governo), obrigam famílias inteiras a voltar para trás. Houve quem discordasse devido à inconsistência política, ou até flagrante ilegalidade à luz do direito europeu, de discriminações com base em nacionalidades.
Julgo que ambos os lados têm razão. A proposta de preços mais baixos, ou até de gratuitidades muito mais alargadas, faz sentido e é motivada por preocupações pertinentes, mas seria insustentável, nos termos exactos em que foi apresentada. O ponto é que existem alternativas. Uma delas, a mais recuada, é a que foi adoptada pelo “governo da geringonça”. Recordo conversa que tive com o ministro Luís Filipe Castro Mendes, na qual lhe disse que o ICOM Europa já tinha estudado o problema e havia uma solução simples: praticar preços especiais não com base no critério da nacionalidade, mas no da residência – o que depois veio a ser adoptado. Mas apontei também naquela altura para horizonte bem mais audacioso, que infelizmente não foi prosseguido. Falei, usando algo que estava no então programa governativo, do chamado “cartão Cultura +”, que surgia a meus olhos como algo estimável, mas pífio (tão pífio que se finou antes de nascer). Assim chamado, ou de outra qualquer forma, o que verdadeiramente estaria em causa, e continua a estar, seria aplicar à Cultura o conceito, e bem assim o ímpeto social, que depois se viu na revolução do “passe social” nos transportes.
No programa do Governo que agora inicia funções, de tantas vezes se “repensar a Cultura”, parece que a imaginação se esgotou. Fala-se novamente em “lotaria do património” (o que será bom se for bem feito, quer dizer, se se tornar regular, como noutros países europeus, e não somente uma iniciativa celebratória ou ocasional), acenam-se depois cenouras sem grande substância estrutural (como bem poderá ser a campanha “um cidadão, um euro” e certamente será a baixa magia de conferir à Cultura, em final da legislatura, 2% do orçamento “discricionário” – que bem sabemos ser contingente e muito reduzido, não podendo além do mais acorrer aos investimentos estruturais em despesas fixas, nomeadamente com pessoal, de que se carece como de pão para a boca). No resto, postulam-se generalidades. Mas nada se diz quanto àquela que poderia ser a mais eficaz medida de promoção da cidadania cultural.
O que fazer, então? Bom, creio ser tão simples como o ovo de Colombo: o Governo deveria legislar no sentido da criação de um “passe Cultura” que favorecesse o acesso à mesma, mediante a prática de preços reduzidos, ou no limite da gratuitidade, em função dos rendimentos pessoais e/ou do agregado familiar, em sede de IRS. O passe em questão, sempre pessoal e nominativo, poderia ser obtido automaticamente, aquando da emissão dos comprovativos de liquidação do imposto. Poderia ser enviado pela administração fiscal ou descarregado pelos contribuintes. Alternativamente, poderia ser por estes requerido em repartições de finanças, lojas e espaços do cidadão ou juntas de freguesia.
À partida, este cartão, ou passe, deveria incluir as instituições directamente administradas pelo Ministério da Cultura (desde logo os museus, monumentos e teatros nacionais) e por outros organismos governamentais ou de capitais exclusivamente públicos (caso da Imprensa Nacional, cujas edições deveriam ser acessíveis mediantes descontos generosos; casos de Serralves, da Parques de Sintra ou da Fundação Côa Parque, entre outros). Só isso já lhe daria indiscutível validade. Mas, com a dinâmica gerada, deveria ser negociado o envolvimento de outras entidades, autárquicas, associativas, fundacionais e privadas. Estou certo que muitas haveriam de querer aderir, nuns casos com a devida compensação por parte do Estado, noutros mesmo sem isso, porque os descontos praticados seriam contrabalançados pelo aumento das receitas em visitantes, espectadores ou compradores. Criar-se-ia, desejavelmente, uma espécie de bola de neve em que todos ganhariam: os residentes pagadores de impostos em Portugal (portugueses na sua esmagadora maioria, claro), que veriam o acesso à Cultura embaratecido, no limite gratuito, toda a fileira de instituições e entidades fornecedoras de conteúdos culturais, que veriam o mercado aumentar consideravelmente, e também o Estado, pela promoção da maior fruição cultural por parte dos cidadãos. Os museus e monumentos nacionais, em especial, veriam finalmente reconhecido o seu estatuto de suportes estruturantes das políticas da Cultura e âncoras do contrato nacional.
Repito que é como na questão dos passes sociais para os transportes: o ovo de Colombo. Só faltam vontade e visão política, coisas que parecem estar ainda arredadas do presente programa governativo.