O Governo e o secretariado-geral
É sintomático que Costa não tenha perdido tempo em explicar a orgânica e o modelo do novo Governo ou as novas formas de actuação preconizadas.
Um Governo com 19 ministros e 50 (cinquenta, tão por extenso como o número) secretários de Estado não podia deixar de suscitar perplexidade e, como é tradição em Portugal, o apetite pela piada fácil e a maledicência, agora amplificadas através das redes sociais. 19 ministros já parecem demais, pelo menos de um ponto de vista de concentração organizativa e eficácia operacional, mas 50 secretários de Estado – por vezes até com funções aparentemente sobrepostas ou conflituais – sugerem uma pequena multidão onde é fácil confundir as identidades e os papéis atribuídos a cada um. Como explicar, então, tal enigma ou originalidade histórica, sendo este o Governo mais numeroso desde 1976?
As hipóteses serão várias, mas pessoalmente inclino-me para uma: a do receio de António Costa (tão hábil quanto pouco predisposto ao exercício da auto-crítica) ser apanhado de novo pelas surpresas funestas com que foi confrontado o Governo anterior, desde os incêndios a Tancos, passando por outros episódios mais correntes. Costa decidiu armar, por isso, um dispositivo capaz de prevenir todos os riscos e situações inesperadas, uma espécie de infalível ecrã protector contra as ameaças exteriores, semelhantes àqueles que vemos nos filmes de ficção científica.
O problema é que, como acontece precisamente em certos filmes com excesso de protagonistas, actores secundários e figurantes, o realizador – António Costa, neste caso – arrisca-se a perder o controlo da super-produção e mergulhar num precipício criativo. Ou seja: pensando que a quantidade e diversidade de agentes políticos nos mais diferentes cargos e com as mais variadas competências evitará o perigo de acidentes como aqueles que marcaram os últimos quatro anos, Costa expõe-se a ser ultrapassado pela máquina que agora criou na produção de outros acidentes eventualmente incontroláveis. E o Governo pode reduzir-se a uma espécie de secretariado-geral perdido no seu labirinto de funções múltiplas e concorrentes.
Admita-se que a minha percepção poderá estar errada e Costa estar certo no modelo de Governo que desenhou para os tempos mais ambiciosos que aí vêm, quando se tratar de responder aos quatro grandes desafios estratégicos que ontem enunciou no seu discurso de posse: as alterações climáticas, a sustentabilidade demográfica, a transição digital e o combate às desigualdades. Ora, precisamente, como pode uma agenda marcada por desafios tão decisivos correr o risco de dispersar-se através de caminhos desencontrados, sem um pólo central forte, coerente e motivador (que não é preenchido de facto pelos quatro ministros de Estado) e diluindo-se nos pólos concorrentes e dispersos do tal secretariado-geral? Além disso, não basta acenar com o salário mínimo de 750 euros em 2023 para acicatar os apoios da esquerda e o optimismo das vítimas da pobreza e desigualdade.
Se é certo que Portugal recuperou em grande parte da apagada e vil tristeza dos anos da troika , também é certo que se tem deixado ficar para trás, há mais de uma década, nos patamares do desenvolvimento europeu – e o nosso tecido económico e empresarial, além da paisagem magra dos nossos recursos acusam um atraso que não será ultrapassado por golpes de mágica. É preciso assumir a consciência dessa situação e das dificuldades que teremos de enfrentar, não alimentando falsas ou excessivas expectativas, como Costa se sentiu tentado a promover no seu discurso de posse. É aliás sintomático que, nesse discurso, não tenha perdido tempo em explicar a orgânica e o modelo do novo Governo ou as novas formas de actuação preconizadas – para além dos conselhos de ministros descentralizados – para cumprir os objectivos que se propõe atingir. Não basta querer acreditar. É preciso ter motivos sólidos e mobilizadores para crer.