José Bento (1932-2019): um poeta que amou duas línguas e duas culturas
Foi o mais importante tradutor português de poesia espanhola, e deixa ele próprio uma obra poética muito pessoal e de grande qualidade, cujo insuficiente reconhecimento se ficará em parte a dever à exemplar discrição do autor. José Bento morreu este sábado no Hospital Amadora-Sintra, onde estava internado. Tinha 86 anos.
Tradutor incansável da poesia espanhola de todas as épocas e autor de uma obra poética não muito extensa, mas de reconhecida qualidade, José Bento morreu este sábado no Hospital Amadora-Sintra, onde se encontrava internado há já algum tempo. Faria 87 anos no próximo dia 17 de Novembro.
O seu corpo será velado este domingo, a partir das 16h, e até às 21h, na capela n.º 2 da Igreja Paroquial de S. José, em Algueirão, Mem Martins, Sintra.
Tanto a cultura portuguesa como a espanhola devem muito a José Bento, e se este não teve nunca a notoriedade que a sua colossal obra de tradutor e a autenticidade da sua voz poética justificariam, também nunca deu sinais de a desejar, tendo-se mantido sempre afastado dos circuitos da autopromoção.
Nascido em Pardilhó, Estarreja, em 1932, José Bento de Almeida e Silva fez o curso do Instituto Comercial de Lisboa e foi professor do ensino secundário, tendo depois trabalhado em diferentes empresas. Dessa sua formação académica e posterior passagem pela docência ficam uma série de livros de contabilidade e de estudos comerciais que foi publicando desde o início dos anos 60, por vezes em colaboração, e que viriam a ter sucessivas reedições.
De idade muito próxima de poetas como Ruy Belo, António Osório ou Pedro Tamen, colaborou em revistas dos anos 50, como Árvore, Cassiopeia, que dirigiu, ou ainda em Cadernos do Meio-Dia, entre outras, e integrou a redacção da revista O Tempo e o Modo desde o seu lançamento, em 1963, assinando vários textos de crítica literária, como faria depois na Colóquio Letras, em cujo número inaugural colabora, em 1971, com uma recensão a um livro do poeta José Valle de Figueiredo.
A sua estreia como tradutor de literatura espanhola dá-se ainda no final dos anos 50, com a tradução de Platero e Eu, de Juan Ramón Jiménez, originalmente publicada na Livros do Brasil com desenhos de Bernardo Marques. E nos anos 70 lançará antologias de Pablo Neruda e Vicente Aleixandre, ambas com a chancela da editora portuense Inova, que no final dessa década irá também acolher, na sua icónica colecção de plaquetes cor-de-laranja, os primeiros livros de poesia de José Bento: Sequência de Bilbau (1978), ilustrado com uma reprodução da Guernica de Picasso, e In Memoriam. O título do seu livro de estreia já prenuncia esta afinidade electiva com a literatura e com a história e cultura espanholas, que dará à sua própria poesia, distendida, reflexiva, discursiva, uma tonalidade subtilmente distintiva no contexto da lírica portuguesa dos anos 70.
Mas a esta estreia não correspondia propriamente a sua revelação como poeta, e basta pensar que os poemas que por essa altura já fora espalhando por publicações periódicas tinham bastado para convencer o dotadíssimo leitor de poesia que era António Ramos Rosa a inclui-lo, em 1969, na quarta série da antologia Líricas Portuguesas.
Mas depois destes dois livrinhos da Inova, a sua criação própria volta a silenciar-se durante toda a década de 80, com a excepção de El Entierro del Señor de Orgaz y Otros Poemas, publicado em Espanha, em edição bilingue, com um conjunto inédito dedicado ao quadro de El Greco.
Já o tradutor estará bastante mais activo. José Bento traduz, anota e prefacia poesia de Jorge Manrique, Garcilaso de la Vega, Frei Luis de Léon, S. João da Cruz, Santa Teresa de Ávila ou Francisco de Quevedo, e também de poetas do século XX, como o peruano Cesar Vallejo, Luis Cernuda, Rafael Alberti, Maria Victoria Atencia ou Francisco Brines. E em 1985 a Assírio & Alvim de Manuel Hermínio Monteiro e Manuel Rosa publicam a sua monumental Antologia da Poesia Espanhola Contemporânea, com quase 900 páginas, que se tornará o primeiro vencedor do Grande Prémio de Tradução Literária instituído pela Associação Portuguesa de Escritores.
Embora a poesia tenha sido sempre o seu domínio de eleição, José Bento também verteu para português obras do filósofo Ortega Y Gasset, a História Universal da Infâmia, de Jorge Luis Borges, a correspondência travada entre Unamuno e Pascoaes ou A Celestina, uma obra dialogal do final do século XV atribuída a Fernando de Rojas.
Em 1990, os Cuaderna de Poesía Portuguesa publicam-lhe em Madrid o opúsculo Adagietto, e em 1992 sai Silabário, na Relógio D’Água, uma compilação da sua obra poética acrescida de inéditos. Os prémios D. Dinis e Pen de Poesia atribuídos a Silabário vêm ajudar a lembrar que o grande tradutor de espanhol que já começava a ser devidamente considerado era também um poeta um tanto bissexto mas que valia certamente a pena descobrir.
O ano de 1993 vê surgir mais uma grande antologia, desta vez dedicada à poesia espanhola do siglo d’oro, novamente publicada pela Assírio & Alvim e dividida em dois espessos volumes, o primeiro dedicado aos poetas do Renascimento e o segundo aos do Barroco. E nessa mesma primeira metade dos anos 90, José Bento arranja ainda tempo para nos dar traduções do oitocentista Gustavo Adolfo Bécquer e de José António Ramos Sucre, de Miguel Hernández e do mexicano (e pessoano) Octavio Paz, e ainda de Jaime Gil de Biedma, poeta da sua particular predilecção, de quem publica uma excelente antologia na editora Cotovia.
E a Assírio & Alvim lança ainda, em 1995, Lírica Espanhola de Tipo Tradicional, uma escolha sua do cancioneiro tradicional do país vizinho. E faltaria referir, no mesmo período, a sua tradução do romance Os Rios Profundos, do peruano José María Arguedas, ou os vários títulos que traduziu da filósofa María Zambrano.
Obras castelhanas de Gil Vicente, teatro de Calderón de la Barca, poesia de Góngora e Lope de Vega, dos irmãos Machado (Manuel e Antonio) e de Unamuno, de Lorca e de Ángel González, foram algumas das suas traduções mais importantes nas últimas décadas, que incluem ainda vários romances do crónico candidato ao Nobel Javier Marías, e ainda mais uma grande empreitada antológica: a Antologia da Poesia Espanhola das Origens ao Século XIX, que a Assírio & Alvim lançou em 2001.
E deixou-se para o fim essa espécie de Meca literária a que nenhum grande tradutor de literatura espanhola que se preze pode deixar de ir no decurso da sua vida: o D. Quixote de la Mancha, que José Bento traduziu em 2005 para a Relógio D’Água e que lhe valeu um novo Grande Prémio de Tradução Literária, tendo-nos oferecido ainda um brinde cervantino: Os Trabalhos de Persiles e Sigismunda (Documenta, 2014).
A par de prémios concedidos a trabalhos específicos, o seu trabalho de tradutor foi reconhecido já em 1991 com a Medalla de Oro al Mérito de Bellas Artes, atribuída pelo Ministério da Cultura espanhol, secundada logo no ano seguinte pela Ordem do Infante D. Henrique, atribuída por Mário Soares. Em 2006 recebeu ainda o Prémio Luso-Espanhol de Arte e Cultura, pela sua contribuição para o reforço dos laços ibéricos.
Este intenso labor, que o ocupou enquanto a saúde o permitiu, deixou ainda assim algumas abertas ao poeta, que ressurgiu nos primeiros anos do novo milénio com Um Sossegado Silêncio (2002), publicado na colecção Pequeno Formato, que o ex-editor da Inova, José da Cruz Santos, então dirigia na Asa, e Alguns Motetos (Assírio & Alvim, 2003), uma escolha da sua poesia seleccionada e prefaciada por José Tolentino Mendonça e acrescentada de um conjunto de poemas inéditos.
E em 2011, a chegar aos oitenta anos, José Bento surpreende com aquele que pode bem ser o seu melhor livro de poemas: Sítios, também publicado pela Assírio & Alvim, vencedor do prémio Luís Miguel Nava.
É desse livro o poema que escolhemos para encerrar esta despedida.
Salvação depois da morte
Yo me salvé escribiendo
despuès de la muerte de Jaime Gil de Biedma.
Jaime Gil de Biedma
Em teu sangue soubeste que apenas te importava
escreveres-te, seres poema.
Depois, nem o extermínio:
a indiferença de uma boca ameaçada
pelo veneno que havia de tolher-te,
reduzir-te aos restos de um vazio.
Longe, o menino que em Nava tinhas sido;
e onde quer que estivesses, aí sempre o menino:
anos mágicos, aroma a pinho em chamas,
a mãe sempre a velar, quartos sobre o jardim,
amieiros adolescentes, o castelo,
– cavaleiro a esperar-te há séculos, rendido.
Reflectidas a pele resplandecente
de ilhas onde o sol era uma força
a elevar o céu, lugares e corpos
que seduzias ao entregares-te seduzido
por seu duro poder, pela ebriedade
desembainhada em desafio:
tudo apurado
pela paixão que te queimava até ao fundo
de um copo cujo fundo partiste,
pelos poemas, teu feroz motivo.
Ante um espelho, afrontaste Jaime Gil
(boémio e calaceiro, um tal palerma
que usava a tua roupa, comia do teu prato),
com arrojo e desaforo sem piedade,
com desespero e avidez que ninguém soube
até onde eram contigo ou contra ti.
Ao quereres regressar a esse teu reino,
já não casa, mas palavras rasas
por ti escritas, erigidas em túmulo,
foi para continuares mais do que a vida.