Estás na moda ou na merda?
É aqui que estamos. Paralisados. Num profundo mal-estar a que ninguém consegue atribuir sentido de esperança. Não é preciso ver o filme Joker para o perceber.
E de repente, nas últimas semanas, uma multidão começou a afirmar que a realidade social, económica e psicológica que o filme Joker representa constituiu um “murro no estômago”, como se tivessem sido apanhados desprevenidos. Não estão em causa os méritos do filme, mas esse espanto, passe a expressão, acaba por ser, ele sim, surpreendente. Apetece perguntar: por onde têm andado? Aquela realidade distópica, sombria e niilista é o quotidiano de milhões de pessoas desde a crise de 2008 e Portugal, com todas as suas fragilidades, não constitui excepção.
Até de um prisma artístico não se entende o espanto. Na última década, se existiu algo que foi expresso por artistas, músicos, cineastas, escritores ou outros agentes, foi o tipo de inquietação que o filme transporta. Essa ideia de que o futuro nos foi sonegado tem estado por todo o lado, seja na arte, ou na vida quotidiana. Talvez o facto de estarmos a falar de uma obra diagonal, de massas, explique o fenómeno, mas ainda assim é curto.
A reacção ao filme faz pensar no mundo de ilusão, de comunicação torrencial (tanta dela falsa), que, em vez de gerar conhecimento, apenas confunde e hipnotiza, e também na impotência política e económica em que estamos imersos, com as alternativas que nos oferecem (populistas, antidemocráticas, ultraliberais) a serem mais do mesmo, ou ainda pior.
É aqui que estamos. Paralisados. Num profundo mal-estar a que ninguém consegue atribuir sentido de esperança. Não é preciso ver o filme para o perceber. Basta olhar para a situação geopolítica dos últimos dias (Chile, Hong Kong, Espanha) ou para o contexto doméstico, em que, por um lado, somos embalados com a miragem do “milagre económico português”, e, por outro, temos 2,2 milhões de pessoas em risco de pobreza, muitas delas empregadas, porque a “nova pobreza” é assim, já não é apenas cingida aos que vivem na miséria total, “velhos” ou “novos”, é subtil e transversal.
Ainda esta semana se ficou a saber que arrendar casa, principalmente em Lisboa, leva quase metade (46%) do rendimento médio. Para um adulto sozinho viver em Lisboa em condições dignas é impossível. E já não pega a narrativa de que são os “jovens” os mais atingidos. Somos todos. Somos todos Jokers. Ou pelo menos quase todos. Porque existe quem seja indiferente à situação, ou beneficie com ela, sintoma de ausência de sentido crítico, ou aceitação deste neoliberalismo predatório que naufraga e que é, afinal, a condição de sobrevivência dessas mesmas pessoas.
Uma coisa é certa. Há cada vez mais gente a viver na instabilidade total, nas disparidades salariais, na desigualdade, em que até o mínimo para viver — saúde, educação, habitação, cidadania — vai sendo posto em causa. E o que fazemos? Maquilhamos a realidade, forma de normalizar, legitimar e perpetuar os retrocessos a que assistimos todos os dias. Já sabíamos das metamorfoses que o sistema capitalista neoliberal opera, mas é sinistro assistir à transformação das dificuldades económicas nas novas tendências de estilo de vida. As contingências passam a ser vistas como opções.
Não se é “precário”, é-se “flexível”. Não se leva marmita para o emprego por condicionalismos económicos, mas porque é a “nova onda”. Partilha-se casa, com 20, 30, ou 50 anos, não por causa do salário insuficiente ou da especulação imobiliária, mas porque estamos a praticar coliving. Não se sai de casa ao fim-de-semana para poupar, mas porque a nova tendência é o nesting. Seria cómico, se não fosse trágico. É este o nosso mundo. Questiona-se, e bem, práticas de consumo, mas nunca se interroga o todo sistémico. Isto não é estar na moda. É dissimular a pobreza. É estar na merda, é ser Joker e nem sequer o perceber.