Os 20 anos do euro: o problema das lentes a “preto e zero”

O enquadramento actual e as reformas em curso promovem a divergência entre Estados ricos e pobres e asseguram que países como Portugal irão, lentamente, definhar. Seremos capazes de perceber o que esse percurso representa para o futuro do país e mudar de rumo?

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Leonhard Foeger

O euro entranhou-se na vida dos portugueses. Os "benefícios" que lhe estão associados são conhecidos e continuam a aliciar.

O “discurso pró-euro” e a “sensação de liberdade” convencem: para 64% dos portugueses e dos cidadãos da Zona Euro, o euro é uma "coisa boa" – o suficiente para as autoridades europeias declararem que a moeda única beneficia todos!

Contudo, é surpreendente que a maioria dos decisores políticos continue a ter uma perspectiva “demasiado optimista” em relação ao euro. Essa perspectiva das “elites” tem-se mantido historicamente.

Poucos economistas discordaram da adesão de Portugal ao euro, salientando-se aqui João Ferreira do Amaral. Hoje, continua a estar em minoria quem, como Joseph Stiglitz (Prémio Nobel da Economia), chama a atenção para as deficiências do euro desde a sua criação e, mais ainda, quem defende a saída da moeda única.

Não obstante, cada vez mais portugueses têm a noção das dificuldades acrescidas que vieram com o euro. Têm razão nessa avaliação.

Um desempenho económico medíocre...

Entre 1975 e 1998, o PIB per capita português cresceu à taxa real média anual de 3,2%. O país tinha uma posição de investimento internacional líquida de -24,4% do PIB em 1998. A sua dívida pública era de 51,8% do PIB em 1998.

Na primeira década do euro (entre 1998 e 2008), a taxa de crescimento real média do PIB per capita baixou para 1,2%; na segunda década (entre 2008 e 2018), caiu para 0,5%. A taxa de desemprego média dos últimos dez anos foi muito mais elevada (11,6%) do que entre 1976 e 2008 (7,4%). Entre 2011 e 2016, emigraram do país, em termos líquidos, cerca de 147 mil pessoas, tendo a Alemanha se tornado num destino popular para emigrantes qualificados.

Entre 1998 e 2018, a dívida pública subiu para 122,2% do PIB, quadruplicando em termos nominais. A propriedade das grandes empresas portuguesas passou para não residentes e a posição de investimento internacional líquida agravou-se quatro vezes para -100,8% em 2018. Apesar do enorme ajustamento da procura interna que levou a uma balança corrente ligeiramente excedentária desde 2012, esta passou, novamente, a deficitária em 2018.

A convergência nominal imposta como critério para a adopção do euro não teve qualquer tradução em termos de convergência real. E quando teve, foi conseguida à custa da acumulação de “desequilíbrios macroeconómicos”, como caracterizam as autoridades europeias.

Volvidos 20 anos do euro, o rácio entre o PIB per capita português e o PIB per capita alemão é de cerca de 50%, ou seja, deteriorou-se em 4,7 pontos percentuais (pp) entre 1998 e 2018. O nível de vida dos portugueses divergiu do dos alemães.

O crescimento de outros Estados-membros confirma a decepção que foi a ausência de convergência real deste período. Em 2018, o PIB per capita grego representava apenas 50,8% do PIB per capita alemão (ou seja, -9,2 pp do que em 1998); o italiano fixava-se em 74,3% (-19.8pp).

Se a “aceitação” do euro pelos cidadãos aparenta ser um sucesso, a divergência acumulada ao longo destes anos coloca em causa essa avaliação.

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Portugal perdeu com a moeda única!

Num estudo recente, Alessandro Gasparotti e Matthias Kullas (Centre for European Policy) concluem que o euro trouxe ganhos e perdas muito diferenciados entre os Estados-membros.

Do lado dos vencedores, o maior beneficiário do euro foi a Alemanha, com ganhos de cerca de 23.116 euros por habitante (1,9 biliões de euros), tendo estes sido “particularmente elevados depois da crise da dívida soberana”.

Do lado dos perdedores, destaca-se a Itália, com uma perda de 73.605 euros por habitante (4,3 biliões de euros).

Portugal sai, igualmente, perdedor: 40.604 euros por habitante (424 mil milhões de euros), ou seja, mais de oito vezes o valor do empréstimo das autoridades europeias no âmbito do resgate de 2011 ao país (52 mil milhões de euros).

O país perdeu ininterruptamente desde 2003; entre 2011 e 2014 (durante o programa de assistência económica e financeira concluído com “sucesso") perdeu, cumulativamente, 19.716 euros por habitante; e, entre 2015 e 2017 (anos em que as reformas estruturais entretanto encetadas produziriam os efeitos “desejados"), perdeu mais 16.348 euros por habitante.

A questão que este estudo suscita é: não teríamos vivido melhor sem o euro?

Bem-vindos ao clube de credores e devedores

Antes do euro, as moedas de alguns dos actuais Estados-membros da união económica e monetária eram, naturalmente, mais fortes em resultado de estruturas produtivas baseadas em sectores de mais alto conteúdo tecnológico e maior produtividade (p. ex., Alemanha ou Holanda). Outras eram mais fracas, dada a estrutura económica de menor valor acrescentado (p. ex., Portugal, Espanha, Grécia ou Itália).

A partir de 1 de Janeiro de 1999, o euro tornou-se na média ponderada de moedas com taxas de câmbio (reais) associadas a estruturas produtivas diversas. Ao aderirem a uma moeda demasiado forte, os decisores políticos de países como Portugal aceitaram aplicar um imposto implícito sobre os seus sectores transaccionáveis, transferindo-o todos os anos, sob a forma de subsídio implícito, para os sectores transaccionáveis de países como a Alemanha, para o qual o euro permanece subvalorizado.

A moeda única resulta, assim, num subsídio recorrente aos países com estruturas produtivas mais fortes e num imposto, também recorrente, aos países com estruturas produtivas mais fracas. É, portanto, falacioso o discurso da Alemanha quando, a respeito dos superávites excessivos da sua balança corrente no "procedimento relativo aos desequilíbrios macroeconómicos” (PDM) da Comissão Europeia, invoca não fazer sentido aplicar impostos à sua “competitividade”.

Como refere Jan Priewe (HTW Berlin –​ University of Applied Sciences), a força da indústria alemã “surge paralelamente à desindustrialização de outros Estados-membros” e o superávite da balança corrente reflecte as “disfuncionalidades” da União Europeia. É uma "bomba-relógio” para a coesão.

O euro – enquanto sistema de impostos-transferências implícitos – deveria, por isso, ser compensado por um sistema de transferências-impostos explícitos (de Estados ricos para pobres).

Da retórica do castigo para o “aluno mal comportado”...

O esforço de persuasão da audiência levado a cabo pelas autoridades europeias ignora os enormes “custos” associados ao euro.

Aos supra-mencionados, acrescem outros extremamente importantes:

  • A política monetária é uma função da dinâmica da Zona Euro como um todo, na qual pesam mais as economias maiores e menos as menores. Por isso, pode ser “óptima” para alguns e “sub-óptima” para muitos;
  • A ausência da política cambial impede que a taxa de câmbio actue como estabilizador automático face a choques. Como enfatizam Enrico Perotti e Oscar Soons (University of Amsterdam), dado que os preços de mercado e fluxos comerciais se ajustam mais rapidamente do que as estruturas produtivas, a união monetária gera efeitos redistributivos persistentes;
  • E, no que diz respeito à política orçamental, a maior fragilidade é estrutural: o euro foi desenhado sem um credor de última instância e sem dívida federal.

A ameaça de sanções pelo desrespeito de regras orçamentais, a dependência da política do BCE e a exposição a mudanças na notação do risco pelas agências de rating transformam os Estados-membros em “presas fáceis” dos mercados financeiros.

Como notam Paul De Grauwe (London School of Economics) e Yuemei Ji (University College of London), numa união monetária, disciplinar um Estado soberano através dos mercados financeiros é equivalente a estimular ataques especulativos periódicos à dívida dos membros mais frágeis.

... à intransigência do “aluno exemplar” em mudar!

O mau desempenho económico nas últimas duas décadas deve-se à deficiente arquitectura do euro. Esta explica-se pela inflexível oposição alemã a reformas que promoveriam uma mais justa distribuição dos ganhos do euro.

Décadas depois do lançamento deste, uma união de transferências que garanta a convergência estrutural continua a ser “assunto-tabu” para os países ricos e o orçamento europeu que está a ser projectado é uma versão “light” sem capacidade de estabilização.

De igual modo, a União Bancária só avançou de forma faseada e desprovida de um esquema comum de garantia de depósitos (o “terceiro pilar") por manifesta falta de vontade de partilha do risco dos países credores.

Finalmente, a criação de um activo sem risco europeu e a subsequente mutualização da dívida pública não se materializarão num futuro próximo. Mais, a sua potencial introdução faseada desestabilizaria os mercados de dívida, transformando (ainda mais) as obrigações alemãs em activos refúgio e afugentando (ainda mais) os investidores de obrigações de outros países.

Hoje, como no passado, “o aluno exemplar” considera-se – nas palavras de Wolfgang Streeck (Max Planck Institute) – um "poder hegemónico benevolente, que mais não faz do que distribuir bom senso e virtudes morais aos seus vizinhos" desse “império liberal” chamado União Europeia!

Mas hoje, contrariamente ao passado, assistimos, como frisa Peter Ramsay (London School of Economics), àquele império ”...que mais não é do que uma forma de governo improvisada pelas elites nacionais... relutantes ou incapazes de aceitar a autoridade política que advém da democracia...” e que se desdobram “...no estabelecimento de arranjos intergovernamentais supra-nacionais para alimentar essa autoridade”.

Os efeitos da estratégia alemã são claros: impõem uma pressão crescente, limitam as transferências a um nível negligenciável e estão na origem do clube de credores e devedores em vigor na Zona Euro.

A história repete-se, “primeiro como tragédia, depois como farsa” (Karl Marx)

Num texto publicado no Project Syndicate, Robert Skidelski (Warwick University) argumenta que a Alemanha está a fazer aos países devedores o que os Aliados lhe fizeram a seguir à Primeira Guerra Mundial, quando impuseram enormes reparações de guerra àquela que, em resultado, ficou com uma dívida externa elevada.

Entre 1929 e 1931, na sequência da Grande Depressão, o governo alemão adoptou uma política de austeridade, de forma pró-cíclica, para tentar reembolsar aquela dívida. A economia encolheu 25%, o desemprego disparou para 35% e os Nazis (os “populistas” da altura) chegaram ao poder.

A maior parte da dívida acabou por ser perdoada na sequência de várias reestruturações, tendo a Alemanha pago apenas uma ínfima parte.

A 1 de Outubro de 2012, Paolo Savona (até há alguns meses, ministro italiano para os Assuntos Europeus) escreveu uma carta aos amigos alemães e italianos. Relembrou que o objectivo do avanço civilizacional europeu é o de garantir “felicidade para o maior número de pessoas”.

Argumentou ainda que o comportamento da Alemanha se assemelhava ao Plano de 1936 de Walther Funk (destacado membro do Partido Nazi e, a partir de 1938, ministro da Economia de Adolf Hitler).

Esse Plano visava fazer com que:

  • as diversas moedas nacionais “convergissem para a zona do Marco Alemão";
  • o desenvolvimento industrial prevalecesse na Alemanha (e na França); e
  • os restantes países se dedicassem à agricultura e ao turismo.

Na visão de Savona, organismos “bio-jurídicos” como o euro e as políticas orçamentais europeias parecem revitalizar o Plano de Funk. Caberia, assim, à Alemanha clarificar as suas reais intenções quanto ao projecto europeu.

20 anos a não repetir!

O enquadramento actual e as reformas em curso promovem a divergência entre Estados ricos e pobres e asseguram que países como Portugal irão, lentamente, definhar.

Estarão os portugueses conscientes da rede de interações entre elites nacionais (que os governam) e elites supra-nacionais (que governam aquelas)?

Seremos capazes de perceber o que esse percurso representa para o futuro do país e mudar de rumo?

Para que estes 20 anos não se repitam, é necessário deixar de olhar para o euro através de lentes “schwarze null”, estabelecendo, de forma informada e inconformada, linhas vermelhas em relação ao status quo.

Ricardo Cabral é professor auxiliar de Economia na Universidade da Madeira. Ricardo Sousa é professor associado na Escola de Economia e Gestão da Universidade do Minho

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