Rui Jordão, diferente por vontade própria
Morreu nesta sexta-feira, aos 67 anos, um dos grandes goleadores do futebol português. Afastou-se voluntariamente do futebol e teve uma segunda vida como artista plástico.
Rui Manuel Trindade Jordão viveu duas vidas. Foi um avançado goleador, um dos melhores que o futebol português alguma vez viu, um jogador ágil e vibrante que fazia do golo uma festa partilhada. Foi também um artista plástico que encontrou na pintura uma nova vida longe da relva e longe dos golos. O futebol nunca o preencheu totalmente, apesar de ter sido um jogador de uma entrega incondicional, e dele se afastou voluntariamente, não porque lhe causasse repulsa, mas porque tinha espaço na sua vida para mais. O futebol deu-lhe amigos, memórias e notoriedade, mas não mais lhe preencheu na totalidade as horas e os pensamentos. Basicamente, Rui Jordão foi alguém que conseguiu ser um artista nas duas vidas diferentes que teve.
Morreu nesta sexta-feira, aos 67 anos, depois de vários dias internado no hospital de Cascais devido a problemas cardíacos, um homem que foi diferente num mundo em que a regra é conviver mal quando se passa a estar afastado da ribalta. Jordão foi a “Gazela de Benguela”, um angolano que aterrou em Lisboa para jogar no Benfica, onde chegou a partilhar o ataque com Eusébio e de quem foi designado como sucessor. Foram, no entanto, os seus anos no Sporting que o elevaram à categoria de mito, uma década de golos e de títulos que lhe garantiram um lugar à mesa dos maiores de sempre do futebol “leonino”. Mas também foi Rui Manuel, estudante de pintura com 40 anos na Sociedade de Belas Artes, licenciado em História da Arte, e pintor com obra exposta.
Tal como seria a sua vida de pintor, Rui Jordão foi um futebolista tardio. Apenas aos 16 anos começou a jogar no Sporting de Benguela, em Angola, depois de ter mostrado talento no atletismo. O Sporting andava no seu encalce, mas deixou de estar quando Jordão se lesionou. Aproveitou o Benfica, que o foi buscar por 30 mil escudos e meteu-o na sua equipa de juniores. Estávamos em 1970. Um ano depois, Jimmy Hagan já o tinha na primeira equipa dos “encarnados”, que tinha um ataque recheado – Eusébio, Simões, Artur Jorge, Nené, Vítor Baptista. Jordão estava lá para aprender e, aos poucos, vai ganhando um lugar ao lado dos “monstros”. Doze golos na primeira época, 67 nas quatro temporadas seguintes pelo Benfica, onde conquista quatro títulos de campeão e duas Taças de Portugal.
Foram muitos os interessados por toda a Europa, mas Jordão acaba por ir para o Saragoça a troco de nove mil contos. Não fica muito tempo em Espanha. Uma época depois, o Benfica fecha-lhe a porta do regresso e João Rocha resgata-o para o Sporting. Fez a viagem de Saragoça para Lisboa a 28 de Agosto de 1977 para se estrear nessa mesma noite num jogo contra o Vasco da Gama em que marcou dois golos. Em Alvalade, Jordão cumpriu nove épocas, com 187 golos em 279 jogos, com mais dois títulos de campeão nacional, duas taças e uma supertaça, e a memória de um futebol ofensivo e espectacular, ao lado de jogadores como Salif Keita, António Oliveira ou Manuel Fernandes.
Jordão tinha um golo preferido de todos os que marcou pelo Sporting. Não deu uma vitória, mas foi em Alvalade, contra um rival (FC Porto) e foi de levantar o estádio. “Foi o que mais me marcou, um de calcanhar contra o FC Porto”, descreveu Jordão de forma seca. O que o artista não diz é que estava bem fora da pequena área e a afastar-se da baliza. A bola veio da esquerda e cruzou-se com o calcanhar direito de Jordão no momento certo para fazer um arco perfeito e indefensável. Quando Jordão olhou por cima do ombro, já lá estava dentro. Era o artista a olhar para a sua obra.
“Comigo e com o Manuel Fernandes, nós os três tínhamos sempre a preocupação de fazer um jogo entusiasmante, não podia ser de outra maneira, meter arte naquilo que fazíamos. Era um genial jogador, tinha um estilo próprio e inimitável, e, por vezes rivalizava com o próprio Eusébio. E gostava de partilhar com os estádios cheios todo aquele talento que ele tinha”, conta ao PÚBLICO António Oliveira, que foi colega de Jordão no Sporting durante algumas épocas.
Na selecção portuguesa, também deixaria a sua marca. Foram 15 golos em 43 internacionalizações, dois deles numa meia-final do Euro 84, contra a França, decidida num prolongamento a favor dos gauleses que viriam a ser campeões europeus – Portugal teria de esperar 20 anos pela sua primeira final e 32 pelo seu primeiro título.
A história de amor com o Sporting não teve um final feliz. Com Manuel José no banco, Jordão perdeu protagonismo e resolveu abandonar o futebol. Passou um ano sem jogar, mas regressou em 1987 para se juntar a uma colónia de ex-sportinguistas no Vitória de Setúbal. Malcolm Allison, que o conhecia do Sporting, era o treinador, e foi Manuel Fernandes a convencer a “Gazela de Benguela” a reeditar a dupla. Ainda fez mais duas épocas antes de abandonar definitivamente o futebol, aos 37 anos, para iniciar uma nova vida, longe do futebol, longe da ribalta, mas fiel ao que, na verdade, sempre tinha sido, “um homem muito recatado, humilde, não por nenhum vedetismo, mas pela sua própria natureza”, como descreve António Oliveira. “Adorava o futebol, toda a gente o adorava. Ele refugiou-se, mas não fugiu de ninguém.”
Do futebol, manteve distância, mas guardou os amigos. “Tinha um mundo muito próprio, muito dele, não deixava aproximar-se qualquer um e eu era um dos privilegiados”, contou à agência Lusa Augusto Inácio, outro antigo colega no Sporting. Outra das amizades que manteve, uma das mais fortes, mostra bem o homem que Jordão era. José Eduardo, antes de ser colega de Jordão no Sporting, foi seu adversário e foi o responsável, em 1979, como defesa do Famalicão por uma das lesões mais graves da carreira do avançado – partiu-lhe uma perna. Não ficaram amigos por isto, mas aproximaram-se depois, já como colegas de equipa, e ficou. Num testemunho emocionado ao “Expresso”, José Eduardo, que foi um grande impulsionador da carreira artística de Jordão, falou de “uma personalidade fantástica, genial, única, com pensamentos profundos e difíceis”. “Despediu-se de mim. Abraçou-me e pediu-me para cuidar dos filhos. Depois, beijou-me.”
Depois de recuperar uma paixão pela pintura que tinha quando era garoto, Jordão nunca se afastou totalmente do futebol. Ainda via alguns jogos, ainda ia de vez em quando ao estádio, ainda fazia algumas aparições públicas para lá das exposições em que participava. Só falava de futebol para dizer que não queria falar sobre futebol. Foram, aliás, muito raras as entrevistas que deu depois de terminar a carreira. “Provavelmente, só vou continuar a gostar de futebol se me mantiver assim, distante”, contava numa reportagem do Expresso em 2000.
Quando inaugurou uma exposição na Casa do Marquês, do amigo José Eduardo, Jordão teve outro desses raros momentos, e com uma lucidez própria de quem deixou de ter a bola, “um objecto egoísta e centralizador”, como centro do seu universo. “A estética do futebol marcou-me e ajudou a definir-me o carácter. Em certos movimentos que fazia dentro do campo é possível ver coreografias, traços que provavelmente também se manifestam naturalmente no pincel”, contou ao Record em Novembro de 2000. “Mas o que o futebol não tem é o silêncio que preciso para mostrar a verdade que, enquanto jogador, ocultei. Talvez falte mais silêncio ao futebol.”