Memórias e memoriais à sombra de Marguerite Duras
O Doclisboa começa com cinema “diferente” e político, do feminismo de Delphine Seyrig e de Carole Roussopoulos às memórias suprimidas da Tailândia.
“O cinema diferente é forçosamente um cinema político” – a frase de Marguerite Duras numa emissão televisiva dos anos 1970 cai que nem ginjas nos primeiros dias do Doclisboa e nas primeiras propostas do festival. A mesa-redonda em que a escritora aparece é uma das descobertas de arquivo de Delphine et Carole, insoumuses, exibido na secção Heartbeats (repete no dia 21, às 21h30, na Culturgest), deliciosa viagem ao coração do feminismo francês pós-Maio de 1968 pela socióloga britânica Callisto McNulty, que a construiu a partir de imagens de, por, e com Carole Roussopoulos (1942-2009) e Delphine Seyrig (1932-1990).
Carole foi a segunda pessoa a comprar em França uma das primeiras câmaras vídeo da Sony, Delphine era actriz em filmes de Alain Resnais, Jacques Demy, Chantal Akerman ou Duras. Juntas, animaram durante uma década o colectivo Video Out, que deu origem ao Centro Audiovisual Simone de Beauvoir, arquivo de imagens de e sobre o feminismo. Juntas, recolheram imagens das lutas pelos direitos das mulheres na França patriarcal, numa série de filmes simultaneamente activistas e bem-humorados, com títulos como Y’a qu’à pas baiser! (É só não fazeres sexo!) ou Sois belle et tais-toi (Sê bonita e cala-te).
Delphine et Carole, insoumuses nasce de um projecto de filme que Carole Roussopoulos iniciou pouco antes de morrer. McNulty, neta da cineasta, contou com a colaboração e o apoio da família para retomar estas imagens preciosas e criar um filme-memória sobre um momento em que o feminismo não significava radicalismo mas apenas a assunção de uma identidade e de uma força que era negada às mulheres pela sociedade ao redor. O cinema que Carole e Delphine fizeram juntas nessa década de 1970 era um cinema marginal, diferente, porque era feito sem dinheiro, literalmente “na margem”, com a câmara vídeo como “máquina de dar a palavra” àquelas que até aí não a tinham, mas com humor e irreverência, sem tombar no panfleto. Mesmo que, como diz Duras na entrevista que então a juntou a Delphine, Chantal Akerman e Liliane de Kermadec, o próprio gesto da existência desse cinema, feito por mulheres, fosse político.
É também uma ideia de gesto feminista político que está por trás de Demons (Cinema Ideal, esta sexta-feira, às 22h), que faz uma curiosa ponte com Delphine et Carole. No novo filme do singapurano Daniel Hui, exibido na secção Riscos, uma jovem actriz aceita um papel numa encenação teatral que a vê ser manipulada por um encenador abusivo. Demons explora essa manipulação através de um colapso lynchiano onde realidade e ilusão se confundem; é uma ficção sobre o processo artístico como abuso psicológico, e sobre o poder masculino e a revolta feminina, tudo com a dimensão elíptica que as cinematografias do Extremo Oriente têm vindo a manifestar (por razões também de sobrevivência). Hui montou A Land Imagined, de Yeo Siew Hua, Leopardo de Ouro do Festival de Locarno em 2018, filme que percorre a mesma twilight zone em que já estava o seu anterior e notável Snakeskin, mostrado no Doc em 2014; Demons é menos conseguido, mas mantém o “ar de família”.
Esse ar de família transpõe-se também para Santikhiri Sonata, do tailandês Thunska Pansittivorakul, seleccionado para a Competição Internacional (Culturgest, esta sexta-feira, às 21h30; com repetição na quinta-feira, dia 24, às 14h). Se Delphine et Carole é um filme-memória, Santikhiri Sonata é um filme-memorial rodado numa zona da Tailândia onde duas aldeias foram submetidas a “limpezas étnicas” e “renasceram” com nomes patrióticos, eliminados o tráfico de droga, a corrupção, e o apego às etnias de origem para projectar uma imagem de paz e de tranquilidade.
Recorrendo a actores não-profissionais e preenchendo o ecrã com pequenas lições de história (sobre os líderes do Kuomintang que fugiram ao regime maoísta e se instalaram primeiro na Birmânia e depois na Tailândia, ou sobre as vedetas pop tailandesas desses anos de guerra secreta), Pansittivorakul define Santikhiri Sonata como um “híbrido”. Percebe-se porquê: oscilando entre o documentário, a ficção, a alegoria, sugerindo mais do que dizendo, este é um filme que desafia convenções e fronteiras, a abarrotar de subtextos regionais específicos que serão quase impenetráveis para espectadores ocidentais.
Estamos algures entre Peter Greenaway e Apichatpong Weerasethakul, com peculiares interlúdios gay quase-renorianos pelo meio, mas há também uma proximidade muito grande com outros experimentalistas como a compatriota tailandesa Anocha Suwichakornpong ou o vietnamita Minh Quy Truong, cujo cinema marginal, “bricolado”, está a meio caminho entre a preservação da memória e a sua projecção no futuro. Santikhiri Sonata cumpre com os requisitos de Marguerite Duras: é um filme político porque diferente, mas também diferente porque político.