A selecção e a amplitude térmica
Fernando Santos não é o seleccionador mais empático do mundo. Não é o melhor treinador do mundo. Não é o pior treinador do mundo. Não é o mais audaz. Não é o mais inovador. Isto é o que o técnico da selecção de Portugal, na minha leitura, não é. Vamos, agora, àquilo que Fernando Santos é. É um treinador competente, que procura a rota mais segura para atingir o sucesso. É um treinador de equilíbrios, determinado, frontal. É um treinador com grande capacidade de análise. Quando ganha e quando perde.
Os portugueses são um povo inflamável, que tanto espalha um calor desmedido à luz da vitória, como ferve em pouca água na ressaca da derrota, por mais rara ou injusta que seja. Para o bem e para o mal, os portugueses são também um povo eternamente insatisfeito, que exige aos seus mundos e fundos, encavalitado na presunção de uma superioridade quase inata que nunca existiu verdadeiramente.
Sim, Portugal tem no futebol uma fonte de talento renovável e um filão competitivo como em muito poucas áreas do sector produtivo. Reconhecê-lo é um sinal de lucidez. É preciso aproveitar essa lucidez, porém, para ver também para além do nosso meio-campo e perceber que do lado oposto há todo um novo mundo a trabalhar com matéria-prima de qualidade e a incorporar algumas notas dissonantes na partitura da velha guarda do futebol europeu.
O desaire com a Ucrânia não é uma queda no abismo, nem tão-pouco um sintoma de quebra continuada de rendimento. Foi a vitória de uma selecção tremendamente competente em organização defensiva, que se sentiu como peixe na água depois de se ter colocado em vantagem num lance de bola parada que expôs algumas debilidades portuguesas na marcação. E que acabou por tirar partido da falta de critério do adversário em zonas de definição.
Falharam as escolhas do seleccionador português? Olhando estritamente para o resultado, é inevitável dizer que sim. Mas a equipa que usou e abusou das iniciativas pelo corredor central, afunilando em demasia o jogo (especialmente na segunda parte), foi a mesma que conseguiu explorar as costas dos laterais em diferentes momentos, mais graças às acções de Nelson Semedo do que de Raphael Guerreiro. E o desenho de maior mobilidade no eixo do ataque, com Ronaldo, Gonçalo Guedes, Bernardo Silva e até João Mário em constantes trocas posicionais, fazia todo o sentido no papel. Ainda que tenha faltado a capacidade de atrair no meio para libertar nas alas e assim desequilibrar o 4x1x4x1 ucraniano.
Tal como acontecera no embate entre as duas selecções no Estádio da Luz, em Lisboa, Portugal fechou as contas com significativamente mais remates, mais pontapés de canto e mais posse de bola. De pouco lhe valeu esse ascendente aparente, no entanto, porque durante demasiado tempo abusou de iniciativas individuais (Bernardo e João Félix) em detrimento das combinações pelos corredores laterais que tão promissoras se tinham revelado (foi assim que nasceram os dois cabeceamentos mais perigosos).
Foi a tomada de decisão no último terço que comprometeu o primeiro lugar do grupo - e não os caminhos escolhidos para lá chegar. É por isso que apontar baterias exclusivamente ao seleccionador, qualquer que ele seja, num contexto como este não é apenas imprudente, é totalmente descabido.
Podemos discutir as ideias, a metodologia de trabalho, a estratégia, o modelo e o sistema de jogo que Fernando Santos preconiza. Pôr em causa a qualidade das prestações da selecção e entender que têm ficado muito aquém da real valia dos jogadores à disposição. Tudo isso é legítimo, mesmo que a subjectividade do tema provoque profundas divisões.
O que não devemos cair na tentação de fazer é lançar nuvens de fumo sobre a competência do único seleccionador que, até à data, permitiu que os debates em torno do êxito de Portugal no futebol tivessem também uma medição objectiva: um título europeu e uma Liga das Nações. É pouco? Pois bem, pelo menos por agora, é tudo o que temos para apresentar no palmarés.
Jornalista. Escreve às quartas-feiras.