Romance protagonizado por polícia catalão dá prémio Planeta a Javier Cercas
O autor é um crítico assumido do independentismo catalão e a consagração de Terra Alta, cujo herói é um mosso d’esquadra, coincide com uma nova onda de violência na Catalunha após as penas de prisão impostas aos promotores do referendo de 2017.
O romance Terra Alta, de Javier Cercas, protagonizado por um polícia catalão a quem cabe investigar um triplo homicídio, venceu a edição deste ano do prémio Planeta, atribuído pelo grupo editorial homónimo e anunciado esta terça-feira numa gala que teve lugar na Sala Oval do Museu Nacional de Arte da Catalunha, em Barcelona, cujas ruas têm sido por estes dias cenário de violentos protestos contra as recém-anunciadas sentenças de prisão impostas aos líderes independentistas envolvidos no referendo de 1 de Outubro de 2017.
Só ultrapassado pelo Nobel da Literatura em dotação pecuniária, o prémio Planeta oferece 601 mil euros ao vencedor e 150.250 euros ao finalista, que este ano foi Manuel Vilas, com o romance Alegria, cuja edição portuguesa, segundo a agência Lusa, deverá ser publicada em 2020 pela Alfaguara, que já lançara no início do ano, com o título Em Tudo Havia Beleza, o pungente romance autobiográfico deste poeta e ficcionista, Ordesa, que teve grande sucesso crítico e comercial em Espanha.
O prémio, ao qual concorreram mais de 500 autores, é destinado a romances inéditos escritos em castelhano, pelo que ambos os livros foram apresentados sob pseudónimo e com títulos provisórios. Cercas concorreu com o nome da personagem central da sua obra, Melchior Marín, e Vilas candidatou-se usando o nome da actriz sueca Viveca Lindfors.
Nascido em 1962 perto de Cáceres, na Estremadura espanhola, mas vivendo na Catalunha desde a infância, Javier Cercas tem sido um crítico assumido do independentismo catalão, quer em entrevistas, quer em textos de opinião, como o que publicou no diário El País com o título La gran traición, onde afirmava que “o nacionalismo é incompatível com a democracia” e acusava os independentistas de só considerarem catalães os que votavam como eles querem.
Terra Alta, cuja acção decorre num futuro próximo, em 2021, tem como pano de fundo o processo independentista catalão, e se o seu autor assegura que não é esse o tema do romance, também reconheceu aos jornalistas que o livro, “sem o que aconteceu estes anos na Catalunha, nunca teria sido escrito”. Numa entrevista ao jornal El Mundo, precisa: “Terra Alta não é sobre o ‘procès', mas todos os sentimentos, a angústia e as experiências destes meses foram o carburante para o escrever. Sentei-me a escrevê-lo tentando afastar-me de tudo, como numa cápsula, mas os temas que surgiram tinham que ver com ele: a ânsia de justiça, o valor da lei, a legitimidade ou não da vingança, a traição.”
Pelo que já se vai sabendo do livro, trata-se de um policial em que um casal da alta sociedade e uma sua empregada são encontrados mortos com sinais de terem sido torturados, com a narrativa a relatar paralelamente a investigação e a crise matrimonial que o dito casal atravessava. O herói é um polícia catalão com um passado de delinquência e que se destacou na reacção ao atentado, reivindicado pelo Daesh, de 17 Agosto de 2017, quando uma carrinha atropelou mortalmente 13 peões na concorrida Rambla de Barcelona e feriu ainda mais de uma centena de pessoas, tendo-se seguido uma operação policial em Cambrils, onde os mossos d’esquadra mataram cinco suspeitos de estarem a planear um novo ataque terrorista.
Javier Cercas estreou-se em 1987 com El Móvil, mas foi o seu quarto romance, Soldados de Salamina, publicado em 2001, que lhe trouxe notoriedade internacional. O livro, inspirado num episódio real da Guerra Civil de Espanha, o alegado fuzilamento falhado de um dirigente falangista, Rafael Sánchez Mazas, foi publicado em Portugal pela Asa, em 2002, e recentemente reeditado pela Livros do Brasil, do grupo Porto Editora. Os mais recentes romances de Cercas, As Leis da Fronteira (2012), O Impostor (2014) e O Monarca das Sombras (2017), tiveram edição portuguesa noutra chancela do mesmo grupo, a Assírio & Alvim, que, segundo a Lusa, mostrou interesse em vir a editar também o agora premiado Terra Alta.
Javier Cercas e Manuel Vilas, nascidos no mesmo ano, 1962, são hoje dois dos mais lidos e apreciados escritores espanhóis, e este prémio está também a ser lido em Espanha como mais um capítulo do enfrentamento entre dois gigantes do mundo editorial, a editora Planeta e o grupo Penguin Random House, que era até agora o editor de Cercas (através da chancela Literatura Random House) e de Vilas, publicado pela Alfaguara, que integra o mesmo grupo.
Acresce que a Planeta, fundada em Barcelona em 1949, foi uma das empresas que, na sequência do referendo de 2017, mudou a sua sede para Madrid, ao passo que a Penguin Random House espanhola se manteve na capital catalã. No dia em que se conheceram o vencedor e finalista do prémio Planeta 2019, o presidente do grupo que o atribui, José Creuheras, afirmou em conferência de imprensa que tem “o máximo respeito pelas resoluções judiciais”, numa referência às sentenças impostas aos líderes independentistas catalães que tinham acabado de ser conhecidas, e reiterou ainda que “não estão criadas as condições” para devolver a sede da editora à Catalunha.