Está a nascer um movimento para defender os direitos dos trabalhadores em arquitectura
Falsos recibos verdes, abuso de estágios profissionais, baixos salários, instabilidade laboral, falta de progressão da carreira. Face à precariedade que se instalou na área, o recém-criado Movimento dos Trabalhadores em Arquitectura quer defender e reivindicar direitos laborais — e não fecham a porta à criação de um sindicato. Para já, apresentam e discutem o seu manifesto no Porto.
É um universo de contrastes. A crise económica está a ficar para trás, o sector da construção em Portugal acaba de passar por “um dos melhores trimestres de que há memória", o mercado da arquitectura duplicou de valor desde 2014, indica o Conselho dos Arquitectos da Europa (CAE). Há mais encomendas, públicas e privadas, mais trabalho e emprego. No entanto, tal melhoria não se está a reflectir nas condições laborais dos profissionais da área, em particular dos assalariados, denuncia o recém-criado Movimento dos Trabalhadores em Arquitectura (MTA).
“Não estamos só a falar dos baixos salários ou do não-pagamento de horas extraordinárias, mas sim da inexistência de contrato de trabalho e dos falsos recibos verdes, que não dão acesso a subsídios de alimentação, férias, paternidade, desemprego”, começa Inês Azevedo, arquitecta de 27 anos. Estão a falar também do abuso de estágios profissionais, dos gabinetes “muito pequenos” com trabalhadores apaga-fogos que têm de “saber fazer tudo”, dos baixos salários, da instabilidade laboral, da miragem da progressão na carreira. Peças que compõem um puzzle de precariedade que o MTA quer deslindar. Ou, pelo menos, combater, defendendo e reivindicando os direitos laborais destes profissionais.
O rastilho acendeu-se com um debate em Fevereiro, mas na verdade naquela sala cabiam anos de desalento. A conversa, promovida pelo grupo Arquitectos do Partido Comunista Português, no Duas de Letra, no Porto, convidava a discutir “o acesso, exercício e os direitos do trabalho em Arquitectura”. Sem grande divulgação, apareceram 30 pessoas, o que, sublinha Inês, é “representativo da urgência do assunto”.
A partir daí, novos caminhos surgiram e as reuniões sucedem-se, quase sempre em horário pós-laboral, no Porto, num ritmo semanal. Por elas, já terão passado umas 70 a 80 pessoas, arquitectos e não só, trabalhadores e estudantes, de várias faixas etárias, mas sobretudo jovens na casa dos 30 anos. “Procuramos organizar todas as pessoas que trabalham em Arquitectura: arquitectos inscritos ou não na Ordem, que acabaram ou não o curso, orçamentistas, desenhadores, projectistas, …”, enumera Tiago Ascensão, de 29 anos, actualmente a fazer estágio para a Ordem. Mas a porta está sempre aberta (inclusive via redes sociais). Basta aderir à mailing list para receber as actas das reuniões e convocatórias.
À mesa com o P3, sentam-se cinco representantes — falta apresentar Catarina Ruivo, Diogo Silva e Ricardo Gouveia — mas eles são mais, “bastante mais”. É um colectivo apartidário, com uma estrutura “horizontal”, de geometria “variável”. Até agora, dedicaram-se a fazer o estado da arte, a conhecer a realidade e a transmiti-la aos outros. Criaram grupos de trabalho, leram tudo o que é estudo sobre o sector, produziram os seus próprios relatórios. “Para nos esclarecermos a nós próprios e aos outros”, completa Inês. Tudo isso vai desaguar num manifesto, que é também “um convite à participação”, e que inclui todas as reivindicações. Será apresentado e colocado à discussão em duas assembleias, abertas a todos os interessados (sob inscrição prévia no site do colectivo): a 26 de Outubro e 9 de Novembro, pelas 15h, na Associação de Jornalistas e Homens de Letras (R. de Rodrigues Sampaio, 140), no Porto.
O retrato actual
Muitos destes problemas “não são novos”, mas, sublinha Ricardo Gouveia, de 26 anos, também a fazer estágio para a Ordem, têm agora “contornos diferentes”. Existem hoje no país mais de 23 mil arquitectos – segundo um estudo promovido pela Secção Regional Norte da Ordem dos Arquitectos (OASRN) divulgado em Julho, Portugal tem o segundo maior número de arquitectos per capita na Europa, mas tem simultaneamente os profissionais mais mal pagos. Ao contrário do que aconteceu com a crise económica de 2008, que empurrou os arquitectos para a emigração e para o desemprego, o sector da construção está em recuperação e há mais trabalho. Mas em que condições? “A emigração continua a acontecer e continua a ser uma opção ponderada por muita gente”, evidencia Ricardo. “Não por causa da falta de trabalho, mas em virtude da falta de perspectiva de futuro e de progressão na carreira.”
Primeiro, diz o MTA, há que contrapor o senso comum: o típico arquitecto português não é um profissional liberal. Segundo o estudo do sector feito em 2018 pelo CAE, que, afiança Inês, peca por defeito pois só abrange arquitectos inscritos na Ordem, 59% dos arquitectos portugueses são assalariados, ou seja, trabalham por conta de outrem “em condições precárias e de instabilidade profissional enormes”. Os falsos recibos verdes, afirmam, são uma realidade. E hoje o “modelo quase exclusivo de contratação dos recém-formados” passa pelos estágios profissionais, uma questão que já foi inclusive levantada em 2016 pela petição “Fora da Ordem", o que “leva a que haja uma rotatividade de profissionais que nunca chegam a ficar efectivos”.
A precariedade, porém, estende-se “mesmo aos trabalhadores que têm contratos”. Fala Catarina Ruivo, de 29 anos, “ainda não oficialmente arquitecta”, socorrendo-se dos números das Estatísticas da Cultura de 2017: “Os gabinetes em Portugal são muito pequenos: 99% têm menos de dez pessoas. O que significa que os trabalhadores têm de saber fazer tudo, desempenham uma série de tarefas que vai para além daquilo que é o trabalho do arquitecto e a sua formação.” Seja produzir imagens 3D, burocracias ou medições. “Coisas para as quais não estamos formados e, para responder, temos de aprender por iniciativa própria. E se fossem contratadas pessoas especializadas seria com outro tipo de valores”, completa Inês.
As “responsabilidades acumulam-se”, mas o “salário não acompanha”. Catarina dá conta de dados “assustadores”, retirados do mesmo estudo do CAE: os trabalhadores em arquitectura em Portugal em empresas privadas ganham em média cerca de 850 euros brutos (valor ajustado ao poder de compra), abaixo do salário médio nacional (943 euros brutos, em 2017). Em termos europeus, fazendo ajustes para o poder de compra, a conclusão é de 11.751 euros de rendimento anual de um trabalhador assalariado em arquitectura em Portugal versus 28.492 euros da média europeia. Também o estudo da OASRN traça um retrato pouco animador: os arquitectos portugueses ganham, em média, 1000 euros brutos por mês, ou seja, cerca de um terço do que ganham os europeus (2840 euros é a média). Como dizia ao PÚBLICO Alexandre Ferreira, vice-presidente da OASRN, “não haverá muitas profissões em Portugal que tenham o impacto e a projecção internacional da arquitectura — e não estou a falar apenas dos dois prémios Pritzker, estou também a referir-me ao know how e ao capital humano de excelência que marca a arquitectura portuguesa, e como isso não tem tradução em termos económicos”.
Salvaguardando que os trabalhadores “merecem sempre boas condições”, esteja o mercado “melhor ou pior”, Diogo Silva, arquitecto de 29 anos, fala de “um processo contraditório”: “Com o ajustar do episódio da crise parece que se concentraram todas as áreas de saber em cada vez menos pessoas, com condições remuneratórias e de progressão de carreira inexistentes ou indignas. E há ainda uma questão mais grave: “Neste momento, um arquitecto concentra mais responsabilidade no exercício da sua profissão do que há 20 anos e tem cada vez menos condições de estabilidade e de justiça.”
Sindicato à vista?
Feito o retrato, o MTA organiza a lista de reivindicações em três grandes questões “cruciais”. Primeiro, diz Diogo, há que cumprir a lei e “combater a lógica transversal de contratação irregular”. Depois, há que “ultrapassar” o que já está previsto na legislação e lutar por outras condições que permitam o “exercício da profissão com justiça”, como tabelas salariais. E ainda garantir um acesso “mais democrático” dos trabalhadores à formação profissional. Tudo isto associado a mecanismos de avaliação de competências e de progressão na carreira.
“São questões que se interligam porque não é possível falar de progressão na carreira sem termos também formação de qualidade e com avaliação de competências, e não é possível pensar nisso sem ter um cumprimento básico da lei.” Para as concretizarem não põem de parte a constituição de um sindicato, ainda que seja precoce falar disso. “Tudo está em aberto e sujeito a discussão”, sublinha Ricardo. “Também depende da força que consigamos”, completa Diogo. “Seria inconsequente dizer que este grupo que se tem juntado no Porto vai formar um sindicato, se não tivermos representação em todo o lado.”
Não é a primeira vez que arquitectos se unem para combater a precariedade na área – lá atrás, por exemplo, em plena crise, surgiu a Maldita Arquitectura, plataforma em que Diogo militou. “Lutava-se para ilegalizar os estágios não remunerados, que agora já estão regulamentados, ou para acabar com o exame de acesso à Ordem”, recorda-se. Hoje, as causas são outras, há mais arquitectos, uma (espera-se) melhor capacidade de organização colectiva. “E temos algo novo que é acesso ao trabalho”, realça Diogo. E quem lá chega percebe que “é necessário fazer algo para mudar”, pois esta é uma realidade “transversal”, que dispensa histórias individuais ou casos “escabrosos”. “Dizer que profissionais que têm formação superior em Arquitectura ganham menos cem euros em média por mês do que aquilo que é a média nacional já me parece completamente absurdo.”
Artigo actualizado às 14h50. Foram clarificados valores apresentados no 9.º parágrafo