No Amplifest, os Daughters escreveram um novo capítulo
Após dois anos de hiato, o Amplifest voltou com lotação esgotada para o regresso aguardado de Amenra e Deafheaven e para um concerto memorável da banda liderada por Alexis S.F. Marshall que rivalizou com a viagem sonora dos Deaf Kids.
Ao início da tarde do último sábado, na sala 2 do Hard Club, em conversa com outros músicos, Alexis S.F. Marshall, vocalista e frontman dos Daughters, dizia a algumas dezenas de pessoas que assistiam à tertúlia que ainda hoje, ao fim de um par de décadas a liderar bandas, continuava a sentir medo antes de subir a um palco. Confessava fazer parte de um grupo alargado de músicos de personalidade tímida, com grandes dificuldades em enfrentar uma audiência — alcoólico em recuperação, sóbrio há alguns anos, não tem muletas químicas que o ajudem a enfrentar uma plateia.
Umas horas depois chegamos a uma conclusão. Já com a banda toda reunida na sala grande do antigo Mercado Ferreira Borges, aos primeiros disparos sonoros, ficamos a acreditar que o seu maior estímulo para vencer o medo é saltar directamente para a boca do lobo para a partir daí gerir o desconforto. Assim o fez durante cerca de uma hora para assinar mais uma actuação que vai ficar no quadro de honra do Amplifest, que após um hiato de duas edições voltou com mais duas dezenas de bandas de vários espectros do lado mais extremo do rock. Entre os regressos dos Amenra, ou Deafheaven, além dos norte-americanos, a banda mistério do festival, os brasileiros Deaf Kids, foi a que mais se aproximou do concerto memorável que Marshall e companhia assinaram.
À 7.ª edição, a Amplificasom fez uma espécie de compilação de uma série de nomes que estão no historial de concertos da promotora que organiza o festival, este ano a celebrar 13 anos de actividade. Um dos regressos mais aguardados seria o dos Pelican. Há 12 anos estiveram no Porto Rio, ainda só com três álbuns gravados e com o nervo de quem está a somar os primeiros anos de palco. No domingo, à semelhança do último Nighttime Stories (2019), deram um concerto mais polido e programado, longe do formato jam session de outros anos. Do “cartel” da promotora regressaram ainda Emma Ruth Rundle, Author & Punisher, Nadja, Deafheaven e Amenra.
Seriam as duas últimas bandas o motivo mais forte para muitos terem comprado um dos bilhetes que esgotaram em poucas semanas. Estes dois grupos têm um ponto em comum — por cada fã que somam angariam também mais um hater. Contudo, tanto uns como outros conseguiram ultrapassar a fasquia do competente. Se os Amenra beneficiaram das melhores condições de som que tiveram em passagens por Portugal, apesar de um alinhamento feito para picar o ponto, os Deafheaven com a sua mescla de black metal e post-rock adocicado à prova dos fãs mais TRVE (adeptos mais conservadores deste género) conseguiram puxar para o seu lado todos os que se afastam deste conjunto de metaleiros mais puristas.
Obriga o alinhamento de concertos do festival, sem pausas entre bandas, a tomar decisões e a fazer opções. Quem no domingo escolheu jantar enquanto os Touché Amoré actuavam para poder assistir logo a seguir à actuação dos franceses Ingrina não se terá arrependido. Duas baterias, guitarras musculadas, algumas vezes a desviarem-se para o post-rock, e vozes gritadas não descobriram a pólvora, mas estão a dar os tiros certos.
Perto de descobrir algo de valioso estão os brasileiros Deaf Kids. Ocuparam o lugar de banda mistério do cartaz e fecharam o palco grande do festival com trancas invioláveis. Que mais ninguém se atrevesse a entrar ali depois de uma actuação que mais se assemelha a uma viagem de comboio que a cada estação vai abrindo portas a um punk, a um astro do rock psicadélico, a um líder xamânico e a um dealer com um saco cheio de ácidos.
Só os Daughters, na noite anterior, conseguiram superar o “estrago” levado a cabo pelos brasileiros. A discografia dos norte-americanos é tudo menos coerente. Do grincore saltam para o mathcore, para o noise, roçam muito levemente o black metal e aventuram-se pelo industrial. Depois de oito anos de hiato voltaram com o majestoso You Won't Get What You Want, editado no ano passado pela Ipecac, selo de Mike Patton. Não sabemos se este caminho mais art-rock será para seguir em eventuais novos lançamentos. Porém, esta via serve na perfeição a performance de um frontman que à banda traz a intensidade visual e estética que a completa. Alexis S.F. Marshall, em muitos momentos a desferir golpes de cinto no seu próprio corpo e a acertar várias vezes com o microfone na testa, é sedutoramente perigoso e ao mesmo tempo magnético. A banda proporciona-lhe a base perfeita para o descontrolo. Estrearam-se em Portugal da melhor forma e no sítio certo. Para o futuro temos dois desejos: que os Daughters voltem cedo e que o Amplifest regresse já no próximo ano.