Das Mães de Bragança à Luz Vermelha
A nova série da RTP1, que se estreia esta sexta-feira às 22h30, inspira-se no famoso caso do início dos anos 2000 que chegou à capa da Time. Foi criada por Patrícia Müller e realizada por André Santos e Marco Leão.
Dois irmãos estão à porta de uma casa de alterne. Um está dentro do carro, um verde néon a bater-lhe na cara, e cheira cocaína. Pergunta ao irmão, do lado de fora, se se lembra da cadela que tinham quando eram novos, e explica que o que difere a fêmea humana de outras fêmeas no reino animal é as primeiras estarem sempre prontas a ter sexo. Um é segurança da casa de alterne, o outro trafica mulheres. O segurança tem de ir lá dentro admoestar uma prostituta que anda a cobrar mais do que é suposto. O outro vai com ele.
É assim, com dois homens a falarem sobre mulheres sobre as quais têm poder, que arranca Luz Vermelha, a série criada por Patrícia Müller que se estreia esta sexta-feira, às 22h30, na RTP1, depois de se ter estreado em Julho nas Curtas de Vila do Conde. Ao início era uma história sobre o famoso caso das Mães de Bragança, um grupo de mulheres traídas pelos maridos que no início do ano 2000 fizeram um abaixo-assinado para “salvar” Bragança de uma “onda de loucura” que envolvia prostitutas brasileiras, um tema que chegou à capa da revista Time.
Patrícia Müller, que tem séries recentes como Madre Paula e Circo Paraíso no currículo, já pensava desde o início do caso em como o adaptar a uma série de ficção, como explica ao PÚBLICO. Foi guardando uma série de recortes de jornal sobre o assunto e com a produtora Filipa Reis, da Vende-se Filmes, submeteram o projecto à consulta pública da RTP. Chamava-se mesmo Mães de Bragança. Depois, optaram “por nem sequer manter o nome, descolando da ideia da cidade, e aproveitámos só a ideia base, um conjunto de senhoras de uma pequena localidade portuguesa ofendidas com a casa de alterne do sítio e que escrevem uma carta aos jornais e à polícia a denunciar o caso”, partilha.
A série foi realizada por André Santos e Marco Leão, que vêm do mundo das curtas-metragens, num bar em Pinhal Novo, Palmela, chamado mesmo A Sela - Disco Dancing Bar. No elenco, nomes como Sofia Nicholson, Mariana Badan, Margarida Vila-Nova, Sara Norte, Tati Pasquali, Cecília Henriques, Renata Ferraz, Bruna Quintas, Afonso Pimentel, João Baptista, Maria João Pinho, ou Joaquim Monchique. A música é de Bruno Cardoso, que costuma assinar Xinobi mas aqui usa o nome verdadeiro.
Ao partir para isto, a autora queria abordar temas como o tráfico sexual, a intersecção entre poder e sexo, o valor e o preço do corpo, reflectir sobre as mulheres e as prostitutas, a maternidade e como é que estas vidas todas são geridas. Em termos de estrutura, inspirou-se na primeira temporada de The Deuce, a série de David Simon sobre a prostituição e o começo da indústria pornográfica na Nova Iorque dos anos 1970 e 80.
“Ainda hoje pensamos que não, mas no mundo ocidental há mulheres a serem traficadas ao teu lado, que convivem contigo paredes meias”, conta Patrícia Müller, que se foi apercebendo desta realidade enquanto fazia a pesquisa. “Achei isso incrível em termos de ficção. Tentei dar esta proximidade à série e numa vila, como são menos pessoas e toda a gente se conhece, há uma simbiose entre as mães e as prostitutas, são quase as mesmas pessoas, convivem no mesmo habitat, vão aos mesmos sítios”, continua.
A criadora sublinha a importância de “ter muitas mulheres na produção”, já que há uma “aproximação ao corpo diferente da dos homens”, que tendem a “não ter o perigo sexual tão premente”. Quanto ao resultado final, considera que os realizadores “se apropriaram daquele universo e criaram um contexto criativo interessante”, gabando também o elenco e a direcção de fotografia de Hugo Azevedo. “Temos uma série que não é fácil de se ver, muito artística e autoral, mas tem tudo para ter um percurso internacional interessante, já que é diferente do que temos andado a fazer”, conclui.