Alberto Salazar caiu e deixou o atletismo em areias movediças
As ondas de choque após a suspensão do norte-americano, líder do Projecto Oregon e antigo treinador de Mo Farah, estão apenas a começar.
Da falta de público nas bancadas às maratonas nocturnas com altas temperaturas e humidade, muita coisa marcou os Mundiais de atletismo que decorreram em Doha, mas houve outra nuvem gigante que pairou sobre o evento e que pode ter consequências sérias e prolongadas na modalidade. Alberto Salazar, líder do Projecto Oregon, foi suspenso pela Agência norte-americana de combate ao doping (USADA) por quatro anos por múltiplas violações ao código antidoping, deixando os seus atletas que conquistaram medalhas no Qatar a responder a mais perguntas sobre ele do que sobre as proezas que tinham alcançado na pista do semi-deserto Estádio Khalifa. Atletas como Sifan Hassan, a holandesa que triunfou nos 1500m e nos 5000m, ou Donavan Brazier, campeão dos 800m, partilharam a ribalta dos Mundiais com a queda em desgraça do seu treinador (que ficou sem a credencial que lhe permitia estar no evento) e não se vão livrar disso tão cedo.
Foi a 30 de Setembro, ao quarto dia dos Mundiais de Doha, que a USADA anunciou a suspensão por quatro anos de Salazar e de Jeffrey Brown, um endocrinologista ligado ao Projecto Oregon, um projecto fundado em 2001 financiado pela Nike para ser um centro de alto rendimento para atletas do meio-fundo e fundo, sobretudo norte-americanos (mas não só). As primeiras denúncias aconteceram em 2009, mas só agora é que o antigo fundista norte-americano de origem cubana foi castigado por posse e tráfico de substâncias proibidas, pela utilização de métodos ilegais de administração de substâncias a atletas e interferência ou tentativa de interferência no processo de controlo antidoping.
Segundo o relatório que os condenou, Salazar e Brown “partilharam informação com o objectivo de melhorar o rendimento dos atletas através de intervenção médica, com um interesse particular no aumento dos níveis de testosterona”. Salazar, um antigo fundista que ganhou três vezes consecutivas a maratona de Nova Iorque nos anos 1980, não se conforma com a decisão e já anunciou que vai recorrer: “O Projecto Oregon nunca permitiu e nunca irá permitir doping. Vou recorrer e estou ansioso para que este processo longo e injusto tenha a conclusão que eu sei ser a verdadeira.”
Este castigo lançou imediatamente suspeitas sobre todos os atletas que foram/são treinados por Salazar ou que estão associados ao Projecto Oregon. No Mundial de Doha, estiveram sete, que conquistaram um total de cinco medalhas – os dois títulos de Hassan, em 1500m e 5000m, o título de Brazier nos 800m, mais o etíope Yomif Kejelcha (prata nos 10.000m) e a alemã Konstanze Klosterhalfen (bronze nos 5000m). Todos estão agora impedidos de se treinarem com Salazar ou correm o risco de serem punidos por associação, mesmo que nunca nenhum deles tenha falhado um controlo antidoping – e nem todos são treinados directamente por Salazar, como Brazier e Klosterhalfen, que trabalham com Pete Julian, o assistente.
Sebastian Coe, presidente da Federação Internacional de Atletismo (IAAF), já sugeriu aos atletas o corte total de ligações ao treinador caído em desgraça. “As acusações são muito sérias. A Unidade de Integridade do Atletismo já contactou os atletas para deixarem de ter qualquer relação [com Salazar]”, diz o antigo atleta britânico, que também chegou a ser em tempos embaixador da Nike. “Se um treinador é acusado de alguma coisa, os atletas têm de fazer perguntas muito detalhadas”, acrescenta.
Todos vão ter agora uma dose de escrutínio extra por parte das instâncias que gerem o desporto internacional. Thomas Bach, presidente do Comité Olímpico Internacional (COI) já anunciou que vai perguntar à Associação Mundial Antidopagem (AMA) se “todos os atletas [do Projecto Oregon] foram investigados”, se “o relatório [da USADA] cobre toda a existência do projecto” e “se pode afectar os resultados dos Jogos Olímpicos”.
No topo da lista está aquele que será o maior sucesso de Alberto Salazar enquanto treinador, Mo Farah, um dos maiores fundistas de sempre. O britânico esteve com Salazar entre Fevereiro de 2011 e Outubro de 2017, acumulando em pouco mais de seis anos um impressionante palmarés que inclui quatro títulos olímpicos e seis títulos mundiais distribuídos entre os 5000m e os 10.000m. Farah acabaria por se separar do norte-americano e do Projecto Oregon sem nunca ter cometido qualquer violação dos regulamentos antidoping, e a reacção do britânico ao castigo do seu ex-treinador foi de alívio: “Deixei o Projecto Oregon em 2017, mas, como sempre disse, não tenho qualquer tolerância em relação a quem pisa o risco. Estou contente que haja uma conclusão.”