Um democrata só
O partido e o país foram mudando, mas ele manteve-se coerente, no lugar político que tinha escolhido para si próprio. Mesmo que fosse um lugar solitário.
Como explicar aos mais novos a importância de Freitas do Amaral? Como se traduz, em palavras simples, para alguém que no domingo poderá estar pela primeira vez a votar, que a democracia de hoje deve muito a esta figura e que, apesar disso, o partido que ele fundou hesitou em cancelar o final da campanha eleitoral em sua homenagem, quando o fez pela irmã Lúcia ou por Amália?
Certamente enunciando o seu percurso singular, mas repetindo que em democracia é essencial que, por muito profundas que sejam as nossas crenças, haja sempre abertura para o compromisso, para o diálogo, com a necessária capacidade de percebermos a perspectiva dos outros, na tentativa de alcançar um bem comum maior. Algo que escasseia nos dias de hoje.
Para muitos, durante grande parte da sua existência política, Diogo Freitas do Amaral foi a personificação da direita, especialmente por ter sido um dos protagonistas das eleições presidenciais de 1986, que representaram o despertar político para muitos dos que hoje estão no auge das vidas adultas. À esquerda, do outro lado deste combate, estava o vencedor Mário Soares. E foi com ele que Freitas construiu uma sólida amizade, partilhando lutas políticas, como a contestação à guerra do Iraque, e tornando-se visita recorrente do ex-presidente nos seus últimos meses de vida. E neste parágrafo está uma amostra da amplitude política e humana de Freitas do Amaral.
Foi discípulo do último ditador português, mas fundou um dos quatro partidos constitutivos da jovem democracia saída do 25 de Abril, ajudando a que a direita encontrasse um lugar próprio. Votou contra a Constituição, mas cumpriu-a sem hesitações e ajudou a que fosse possível modernizá-la. Foi peça fundamental da normalização democrática ao aceitar integrar um governo com o PS e ao fazer a Aliança Democrática que levou a direita a governar Portugal pela primeira vez após a revolução. Foi ministro dos Negócios Estrangeiros de dois governos completamente distintos e, pelo meio, presidente da Assembleia Geral da ONU.
A relação tensa que manteve com o partido que fundou é talvez a maior prova das profundas convicções de alguém que se via como centrista e europeísta. O partido e o país foram mudando, mas ele manteve-se coerente, no lugar político que tinha escolhido para si próprio. Mesmo que fosse um lugar solitário.
O carácter excepcional desta coerência, num percurso tão diverso, talvez seja difícil de perceber pelos mais novos. Mas o seu exemplo como democrata merece que eles o conheçam e é devedor da nossa profunda homenagem.