Freitas do Amaral fundou um partido e morreu politicamente só
Na apresentação do último livro, afirmou ter vivido no ostracismo. “É uma análise com fundo de verdade e não merecia”, admite Basílio Horta. Diogo Freitas do Amaral morreu nesta quinta-feira aos 78 anos.
A direita não lhe perdoou as mudanças de percurso como a esquerda nunca esqueceu a sua origem. Esteve a pouco mais de 138 mil votos de ser Presidente da República, mas o PSD, parceiro da candidatura de Prá Frente Portugal!, pôs a chancela do falhanço pessoal no insucesso das eleições mais renhidas para Belém. Por um ano foi presidente da Assembleia-Geral da ONU e por duas vezes foi ministro dos Negócios Estrangeiros, a última das quais num executivo de José Sócrates. Desfilou em protestos e abaixo-assinados contra a guerra do Iraque e a troika. A direita condenou-o ao ostracismo. E a esquerda via-o com condescendência. Fundou um partido e morreu politicamente só.
Em 27 de Junho, na apresentação de Mais de 35 anos de Democracia – Um percurso singular, o terceiro volume dedicado às suas memórias no dilatado período de tempo de 1982 a 2017, Diogo Freitas do Amaral surpreendeu. Terminou a breve apresentação da obra, lendo em inglês estrofes de My Way, imortalizada por Frank Sinatra: I've lived a life that's full/I've traveled each and every highway/But more, much more than this/I did it my way (Vivi uma vida cheia/Viajei por todas as auto-estradas/Mas mais, mais do que isso/Fi-lo à minha maneira).
Nesta reivindicação de um percurso sem amarras, Freitas do Amaral omitiu parte do poema: And now, the end is near/And so i face the final curtain (Agora, que o fim está perto/E que enfrento a cortina final). Não o fez por esquecimento mas, certamente, para evitar a exposição pública de constrangimentos da plateia de amigos que assistia ao lançamento do seu último livro no Centro Cultural de Belém. Foi uma forma de despedida, ainda que hoje pareça premonição.
Observando a sua trajectória, Freitas fez o balanço: “Houve uma primeira fase em que, com o país demasiado virado à esquerda, acentuei sobretudo valores de direita. E uma segunda fase em que, julgando eu que o país estava demasiado virado à direita, acentuei sobretudo valores de esquerda.” A sua explicação de fiel da balança parece linear, mas a laboriosa geometria variável na política não estava, então, na moda. Nem era bem vista.
“O papel fundamental de Freitas do Amaral na política portuguesa inicia-se na transição democrática, em 1974 e 1975, com a fundação do CDS [Centro Democrático e Social] a convite da Junta de Salvação Nacional, criando o partido da direita democrática”, recorda, ao PÚBLICO, o politólogo António Costa Pinto, do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa: “Integra na democracia os sectores mais conservadores da sociedade portuguesa, o denominado salazarismo sociológico, num partido em que os eleitores estão mais à direita dos militantes e estes mais à direita dos dirigentes; integra o partido na família democrática europeia da União Democrática do Centro (UDC) que dirigiu, assumindo um papel na luta contra o radicalismo do PREC [Processo Revolucionário em Curso, o denominado Verão Quente de 1975]; completa este papel no período de consolidação democrática após o 25 de Novembro de 1975 e dá outro passo para a estabilização do regime ao entrar no II Governo constitucional do PS, em 1978, apesar de ter sido o único que não aceitou a Constituição nos seus princípios socialistas.”
O sociólogo António Barreto corrobora este diagnóstico. “A parte positiva é que Freitas do Amaral é um dos raros, raríssimos salazaristas que, genuinamente, se converteu e gostou da democracia, jogou na democracia e no jogo democrático”, assinala. “Começou com muita coragem, mas tinha um seguro de vida que era Adelino Amaro da Costa que, ao contrário de Freitas do Amaral, era um homem muito imaginativo, com um prazer quase erótico da liberdade e do exercício da liberdade”, refere.
Assim feito o enunciado, o que parece um percurso linear por uma vontade definida foi um trilho complexo. “Quando o MFA proibiu o Partido do Progresso e o Partido Liberal, essa gente vai em larga escala para o PSD e o CDS. No PSD este problema só se coloca quando o partido não está no poder, mas o CDS é mais pequeno e essas correntes são mais visíveis porque o poder não existia”, analisa Manuel Monteiro, presidente do CDS entre 1992 e 1998.
“Freitas do Amaral era um centrista da linha giscardiana [do Presidente francês Valéry Giscard D'Estaing] expressa na célebre frase ‘rigorosamente ao centro' dos cartazes”, explica José Ribeiro e Castro, líder fundador da Juventude Centrista: “Depois do 28 de Setembro de 1974, o CDS perdeu essa referência, ficando na iminência de ser a próxima fatia do salame do PREC, e tivemos de ser sempre muito cuidadosos para não sermos a fatia seguinte.”
A metáfora corresponde ao radicalismo político de então, tanto à esquerda como dos restos combinados de ultras militares e extremistas civis de direita. “O partido foi colocado nestas circunstâncias, Freitas do Amaral queria um partido mais ao centro, mas não havia mais nada à direita”, sintetiza Ribeiro e Castro.
Geometricamente era uma impossibilidade e, em termos políticos, a porta estava aberta a tensões. “O partido foi-se afastando dele e ele do partido”, é a sentença que valida o que parece um trocadilho mas é condicionante política.
Os eleitores estão mais à direita dos militantes e estes mais à direita do que os dirigentes, numa espécie de jogo de matrioskas, no qual a maior, a direcção do partido, alberga e contém as outras duas, dos militantes aos eleitores, ou seja, da base social de apoio.
“Muita gente critica Freitas do Amaral sem nunca ter percebido que ele nunca mentiu por dizer ao que vinha, albergaram-se no CDS contra o comunismo, mas Freitas era centrista, e andaram entusiasticamente atrás dele nas presidenciais”, pondera Manuel Monteiro.
Época prodigiosa
“Freitas do Amaral não gerava empatia, mas teve prestações políticas admiráveis, como o voto do CDS contra a Constituição, mas o eleitorado e a militância queriam um partido mais à direita, as bases queriam uma rebelião contra a direcção, no que foi apelidado da direita dos valores contra a direita dos interesses”, especifica Ribeiro e Castro.
De nada valeu a homologação democrática europeia, conseguida a ferro e fogo, durante o I Congresso partidário, em Janeiro de 1975, no Palácio de Cristal, no Porto, com a presença destacada de ilustres representantes europeus da democracia cristã, alguns no poder nas respectivas capitais. Foram sequestrados pela extrema-esquerda o que originou uma vaga de telefonemas das embaixadas para os militares, a Presidência da República, o Governo.
“Naquela altura, para além de Mário Soares e do PS, só o CDS tinha uma ligação fortíssima à Europa, através da UDC”, recorda Manuel Monteiro. Este caminho não seria validado.
“Freitas demonstrou alguma capacidade flexível”, destaca António Barreto. “A entrada no II Governo constitucional de 1978 deveu-se a que Mário Soares precisava de um aliado, pois achava que já tinha liquidado Álvaro Cunhal e pensava fazer o mesmo ao PSD, e Adelino Amaro da Costa considerava que o CDS não tinha, ainda, o passaporte para a democracia”, explica o sociólogo.
Basílio Horta foi um dos três ministros do CDS de um executivo de composição inovadora. Tinha a pasta do Comércio, com o correligionário Sá Machado a dirigir a diplomacia e Rui Pena a lançar a Reforça Administrativa. “Foi um dos melhores governos da República, durou pouco mais de um ano mas evitámos a bancarrota e o racionamento”, lembra o actual presidente da Câmara de Sintra.
Eram tempos de emergência. “Vítor Constâncio, que era ministro das Finanças foi a Washington, ao Banco Mundial, buscar 500 milhões de dólares pois não havia divisas e Soares não quis vender o ouro”, prossegue. “Tínhamos boletins de registo de importação, havia compromissos não honrados do Banco de Portugal, faltava o trigo e só depois chegou a primeira intervenção do Fundo Monetário Internacional”, enumera. “O CDS e Freitas do Amaral prestaram um enorme serviço a Portugal”, conclui Basílio Horta.
“Freitas acredita sempre em ser o fiel da balança, ao contrário dos que o colocam à direita, o que nunca foi bem entendido pelos militantes e eleitores do CDS”, admite Manuel Monteiro.
Depois, há a Aliança Democrática (AD). “É pensada por Francisco Sá Carneiro e Amaro da Costa, que dá a imagem de uma direita democrática que consegue o poder”, refere António Barreto. “Com o PS [no Governo de 1978] o CDS subiu degraus, entrou na democracia, com a AD passou a ser um partido constitutivo da democracia”, sintetiza.
“A AD teve importância porque reuniu do centro-esquerda à direita e criou condições para a revisão constitucional de 1982 com a solidariedade e apoio de Mário Soares e do PS”, refere Ângelo Correia. “Criou condições institucionais para que Portugal tivesse uma aproximação mais sólida às posições europeias, propondo a adesão de Portugal à então CEE [Comunidade Económica Europeia], também com o empenho total de Soares e dos socialistas”, afirma.
“Conheci Freitas do Amaral em 1980, quando eu era secretário de Estado da Segurança Social nos governos de Francisco Pinto Balsemão”, relata Bagão Félix: “Era uma pessoa muito rigorosa, disciplinada e analítica, as suas palavras tinham sempre um sentido muito preciso, politicamente era um centrista, um homem mais de pontes do que de muros.”
Foram bons tempos para o presidente do CDS. “Ilustra-se no exercício ministerial, é um ministro sólido, robusto, sensato, bom administrador da coisa pública, um valor seguro”, anota António Barreto.
O ano de 1980 termina em tragédia política e pessoal com o acidente em Camarate, junto ao aeroporto de Lisboa, do Cesna onde seguiam Sá Carneiro e Amaro da Costa para o Porto para um comício de apoio ao General Soares Carneiro, adversário de Ramalho Eanes para a reeleição como Presidente da República.
A morte de Adelino Amaro da Costa desfaz o par da liderança do CDS. “Foi um grande rombo, pessoal e político, é mais fácil num partido substituir o número um do que o número dois, ficou sozinho, sem o seu companheiro e amigo”, reflecte Ribeiro e Castro. É o fim de um duo que se completava na desigualdade dos seus membros. Um imaginativo face a um metódico e diligente, como sugere António Barreto.
Ainda assim, o cume deste tempo foi o desafio a Soares para Belém. Pela primeira vez, são dois os civis que correm para a Presidência, ultrapassando a lógica da conjuntura militar que levara Ramalho Eanes a Presidente da República e, depois, a vencer Soares Carneiro. É a bipolarização clássica da política entre esquerda e direita, num resultado apertado.
“Foram, até agora, as únicas eleições presidenciais com segunda volta, num choque claro entre a direita e a esquerda”, resume Manuel Monteiro. “Foi naquelas presidenciais que vi o melhor Freitas do Amaral que alguma vez conheci, a direita nunca tinha feito uma tamanha mobilização popular”, descreve Ribeiro e Castro. “Apoiei-o na campanha, faltava-lhe, talvez, o elemento mais emocional que o fez perder”, admite Bagão Félix.
Esta época prodigiosa, terminava com uma suave derrota e a desvinculação do PSD de Aníbal Cavaco Silva e de Manuel Dias Loureiro às dívidas de um projecto comum. Caro a Sá Carneiro: o de uma maioria, um Governo e um Presidente.
Tempos de solidão
Depois do desastre do partido do táxi sob a liderança de Adriano Moreira, com um grupo parlamentar reduzido a quatro deputados, abre-se uma nova fase. “Adriano Moreira decide sair da presidência, entende que deve entregar o partido a Freitas do Amaral e, eu, como presidente da Juventude Centrista fui pedir-lhe que regressasse”, relata Manuel Monteiro.
“Voltou no Congresso da Póvoa do Varzim com o CDS a sentir-se colapsar, mas logo naquele momento uma parte substancial do partido não gosta da sua proposta, quando diz que é centrista”, lembra. Nas legislativas de 1991, o CDS passou de quatro para cinco deputados e Cavaco Silva repete a maioria absoluta.
“Tive as minhas tensões com Diogo Freitas do Amaral, ele desfiliou-se do partido em 1992, era eu presidente, por motivos totalmente compreensíveis, quando votámos contra o Tratado de Maastricht em referendo interno e ele considerou que o CDS se estava a afastar da linha fundadora, de um partido europeu que acreditava na monitorização federal do processo de construção europeia”, recorda.
“A mudança sobre o discurso europeu, quando o CDS muda para PP [Partido Popular] leva a três rupturas, com Freitas, Lucas Pires e o PPE [Partido Popular Europeu]”, observa Ribeiro e Castro.
“Freitas sonhou ser Presidente da República, apesar de ter perdido à pele com Mário Soares na segunda volta das presidenciais de 1986, mas Soares durou dois mandatos e apareceu, depois, Cavaco Silva em Belém”, anota António Barreto. “A partir de Cavaco, ele percebeu que não tinha saída à direita, que não podia criar um novo partido ou regressar ao que fundara, é fácil de admitir que teria sido mais fácil na vida política se continuasse no CDS”, explicita.
Por um ano, foi presidente da Assembleia Geral da ONU (1995/1996). “Tinha a convicção de que ia reformar as Nações Unidas e contrariar o Conselho de Segurança, há um certo espírito de ambição que só os ingénuos têm”, narra António Barreto. “Acabou o mandato na solidão, aceitou ser ministro dos Negócios Estrangeiros de José Sócrates [2005/2006] pensando que poderia vir a ser candidato presidencial do centro e do centro-esquerda”, conclui.
“O eleitorado dele nunca lhe perdoou, mas a postura correspondia ao que efectivamente era, não considerava que estava a trair por ser ministro independente num executivo do PS, afinal num país que vota ao centro sem se afirmar centrista”, observa Manuel Monteiro.
Desfilar na rua, ao lado de Mário Soares, Francisco Louçã, de sindicalistas e do universo da esquerda consumou a ruptura com a origem. Um afastamento com outro episódio na legislatura de Passos Coelho e Paulo Portas, como lembra Bagão Félix: “Na altura da crise da dívida pública, em 2014, assinámos juntos com outras 72 personalidades o Manifesto dos 74 sobre a reestruturação da dívida pública portuguesa.”
E a lei da vida fazia desaparecer amigos de sempre. “Quando analisamos, é mais comum a passagem da esquerda para direita do que da direita para a esquerda”, pondera o politólogo António Costa Pinto.
Em termos pessoais foi invadido pela solidão. “A direita portuguesa não aceitou, achava que eu passara a ser propriedade sua e só podia fazer o que fosse do seu agrado”, escreve em Mais de 35 anos de Democracia – Um percurso singular. “A minha liberdade política que incluía aliar-me com quem quisesse, devia ter ficado limitada pela propriedade política que a direita se arrogava sobre mim, aliás a direita costuma dar mais importância à propriedade do que à liberdade”, denuncia.
Afirma, ainda, que viveu no ostracismo desde 2006. “É uma análise com fundo de verdade, cria muita mágoa, durante muito tempo esteve muito só e não merecia”, reconhece Basílio Horta.