João Duque: “Ai vamos sofrer e vamos sofrer bem” se os juros subirem
A SEDES, presidida por João Duque, alerta os partidos neste período de campanha eleitoral para as consequências “negativas” da continuação da política do BCE. “Estamos a cavar o buraco onde já estamos metidos”, diz, prevendo instabilidade na próxima legislatura.
João Duque alerta para os perigos escondidos da dívida pública, defende um Governo de bloco central em caso de recessão e até ironiza: “Já viu o que era dois Centenos juntos? Era imbatível”. Em entrevista ao PÚBLICO e à Renascença, que pode ouvir hoje a partir das 13 horas, o presidente da SEDES critica ainda o actual Governo no que diz respeito às metas da neutralidade carbónica. O Governo foi “ambicioso” e “ingénuo” e, para ser “coerente”, deveria “tributar mais a gasolina”, defende.
A SEDES considera que a deterioração do ambiente económico internacional poderá levar a uma recessão na próxima legislatura. Acha que os programas dos principais partidos, que estão em disputa eleitoral, ‘sobrevivem’ a essa recessão?
Podem sobreviver mas não prevêem esse tipo de problemas e o que é que vão fazer. Talvez fosse interessante dizerem que, em caso de haver uma crise internacional que leve a uma quebra das exportações em determinada dimensão, vamos ter hipótese 1) aumentar os impostos; hipótese 2) reduzir as despesas públicas e nomeadamente esta, esta e esta. Imagine que vai fazer uma viagem de barco, que as coisas vão correr bem e que leva comida para oito dias. Se houver um percalço, há-de ser o que Deus quiser. Logo se vê.
Falou do abrandamento das exportações, que já começou a dar sinais. Como contornar isso?
Os modelos do PSD e PS prevêem que, havendo algum arrefecimento da economia, isso não é catastrófico. Estão muito a contar com a ajuda, para já, do BCE e das taxas de juros negativas e também com a expansão dos orçamentos das economias para onde exportamos. Pensam assim ‘não vale a pena estar a assustar as pessoas’ e dizer-lhes ‘se houver necessidade de cortar, eu vou fazer não sei o quê’. Não vale a pena falar nisso. Quero crer que os programas futuros possam ser melhores.
As últimas eleições foram aquelas onde senti discutir-se pela primeira vez um quadro macroeconómico. Foi e muito bem o PS que trouxe para cima da mesa um quadro com projecção e simulação do crescimento económico com base numa política orçamental. Agora, o PSD, estando na oposição, viu-se na necessidade de fazer a mesma coisa. Isto é bom. Se calhar, nas próximas eleições já teremos alguns partidos a dizer que, em caso de recessão, devemos entrar por este ou aquele caminho.
Um dos sinais preocupantes é a escalada do crédito. Acha que a responsabilidade é mais dos bancos, das famílias ou do Governo?
É preocupante a escalada. Felizmente houve algum abrandamento nalguns sectores e segmentos, mas a própria dívida pública aumentou nos últimos quatro anos.
Também não se fala em dívida pública nesta campanha.
Não, não se fala. O PS acredita que o crescimento pode esbater a questão da dívida. Nós endividámo-nos mais em termos absolutos mas menos em termos relativos porque o crescimento do PIB fez reduzir esse peso. Mas o peso efectivo existe e é muito preocupante. Estamos a viver um regime de taxas de juro como nunca houve há um tempo demasiado prolongado e com consequências que já são mais negativas do que positivas. O BCE devia parar essa política e passar a bola para as políticas orçamentais e da economia real para puxar a inflacção para os níveis adequados.
Neste momento, estamos a cavar o buraco onde já estamos metidos. Se houver uma alteração das taxas de juro de curto prazo e saltarem para os expectáveis 2% dentro da [futura] legislatura, dentro de um ano a dois anos, estamos a falar da Euribor. Os portugueses endividados ficarão ainda mais endividados com taxas que atirarão as taxas de juros dos contratos que ainda têm de habitação para os 3, 3,5, 4% ou por aí acima. Para além disso, teremos o impacto sobre a dívida do Estado que, à medida que se vai vencendo, vai-se renovando [com novas taxas mais altas].
O Estado renova a sua dívida à volta de 40 mil milhões por ano. Isto tem um impacto enorme no Orçamento, no saldo que neste momento nos parece pouco para acudir a tantas necessidades. Se a gestão governamental foi feita com tanta contracção, nomeadamente, no investimento público e nalguns ministérios, e os portugueses foram sensíveis a isso e denunciaram-no, como na área da Saúde, então o que vai ser se nos pedirem muitíssimo mais dinheiro no serviço da dívida? Se nos pedem mais mil milhões ou 1.500 ou 1.600 de juros para pagar sobre a dívida que temos?
Virá aí outro aumento de impostos?
Pois ou uma redução dos gastos do Estado nalguns ministérios.
Há margem ainda para reduzir?
Terá de haver ou então o que vamos fazer? Recorrer mais a dívida. Os governos sentem ainda um espaço, que é um espaço muito ilusório, de que o orçamento agora está equilibrado, de que se o limite é 3% podemos desequilibrar um bocadinho o orçamento e isso dá para cobrir, se calhar, mais um ou dois anos. Se for meia legislatura a repor as taxas e se conseguirmos viver mais dois anos, já está feita uma legislatura e o próximo que venha que vá governar-se. Mas isso não é maneira de governar. Quem governa devia ter a missão de governar não para uma legislatura mas para a vida, como nós fazemos com a nossa vida.
O actual ministro das Finanças andou a amealhar nos últimos anos para ter uma folga para os próximos anos, é isso?
O ministro das Finanças continuou a linha que foi traçada pelo anterior [Vítor Gaspar]. Tínhamos um objectivo que era reduzir o défice. Isso dá uma folga a qualquer um que vá para lá. É claro que descurou noutra área, que foi a dívida acumulada. Mas se as taxas de juro subirem para os níveis expectáveis à volta de 2% a curto prazo, ai, vamos sofrer e vamos sofrer bem. E nessa altura, ele vai ter que escolher o que vai fazer: aumenta impostos, reduz a despesa ou vai incumprir no serviço da dívida? Claro que não vai incumprir, vai pagar os juros. Vai cortar mais no investimento? É a este tipo de perguntas que os programas eleitorais não respondem.
Os principais partidos têm falado muito na necessidade de aumentar o salário médio. Como é que isso se faz?
A forma mais saudável de o fazer era com estímulos ao aumento de produtividade e depois garantir que desse aumento de produtividade a repartição fosse fundamentalmente dirigida ao trabalho. Durante a crise, o capital foi mais poupado do que o trabalho. Dito isto, há que trabalhar a parte fiscal de maneira a proteger ou garantir que o rendimento da produtividade beneficia mais as partes de rendimentos médios e superiores.
Defende que devia haver um alívio maior das classes média e alta?
Claro. O PS e o PSD propõem alguns toques. O PSD parece-me mais ousado, mas o mais ousado de todos é o Iniciativa Liberal que defende uma taxa única de IRS.
Alguém propõe um choque fiscal?
Sim, o PCP e o BE têm propostas muito impactantes do ponto de vista fiscal só que com impactos muitíssimos negativos, como o afastamento da actividade empresarial ou do investimento externo.
Na segurança social, o PSD defende uma velha ideia do PCP de haver uma contribuição sobre o valor acrescentado líquido das empresas para além da taxação sobre o trabalho. Como vê esta confluência?
Acho que o PSD não contou a história toda. O PSD pega numa velha ideia que é diversificar as fontes de financiamento mas muito provavelmente à custa de uma outra compensação porque o programa eleitoral, ao mesmo tempo, não prevê o agravamento da carga fiscal.
Na vossa avaliação dos programas na área da saúde, parecem chegar à conclusão que ninguém promete uma reforma estrutural.
As propostas parecem pouco fundamentadas para o tipo de impacto que possam ter. Quem propõe propostas como a ADSE para todos devia fundamentar com cálculos para mostrar que é possível.
Governo Bloco Central? “Sim, dois Centenos juntos era imbatível”
A SEDES dá muita importância à reforma do sistema eleitoral e tem propostas próprias. Ainda tem esperança numa reforma?
Tenho porque o PS tem uma posição próxima da nossa [sistema eleitoral misto com círculos uninominais e circulo de compensação], não é necessário alterar a Constituição e começamos a ter apoios, alguns pequeninos, de outros partidos.
Esta é a mãe de todas as decisões. Se modificarmos a forma de eleger os nossos representantes, vamos ter um Parlamento mais adequado, mais forte, com pessoas mais bem preparadas para o lugar e quebra-se o lado do funcionalismo dos partidos. É preciso acabar com as cenas de ver pessoas a chorar por não serem integradas nas listas. Quer ser integrado nas listas? Mostra o que vales. Acaba esta subserviência total a um chefe que é o presidente de um directório. Olhe-se para Lisboa, ninguém faz ideia de quem é o sétimo, oitavo membro da lista.
Estas são as primeiras eleições em que concorre o partido Iniciativa Liberal. Este partido é uma espécie de partido da SEDES, uma vez que é o que tem ideias mais próximas?
Na direcção da SEDES, passamos a ter uma pessoa do Iniciativa Liberal mas temos do CDS, PSD, PS. Diria que a Iniciativa Liberal poderia estar ligada a mais instituições. Eu afasto essa ideia.
A SEDES é muitas vezes vista como uma espécie de bloco central do pensamento económico e social do país. Gostava que PS e PSD se entendessem em caso de não haver maioria absoluta?
Gostaria, se fosse para mudar significativamente a ambição e o crescimento de Portugal. Já viu o que era dois Centenos juntos? Meu Deus, era uma coisa imbatível, era para varrer a Europa! Éramos champions.
Temos tido nesta campanha uma ‘guerra de Centenos’. O ministro das finanças, Mário Centeno, e o porta-voz do PSD para as Finanças, Joaquim Miranda Sarmento, são ambos homens do ISEG, que é também a sua escola, e que, aliás, já dirigiu. Qual é o seu Centeno preferido?
Não tenho. Como colega deles, nem posso escolher entre os dois. Por muito tristes que ambos fiquem, não vou divulgar a minha preferência.
Neutralidade carbónica em 2050? Governo foi “ambicioso” e “ingénuo”
Como é que a economia portuguesa e as empresas conseguem atingir as metas de neutralidade carbónica? Por que é que não se ouve um discurso por parte das empresas?
Bom, eu regularia através de um mercado para os direitos de poluição. É a forma mais justa. É dizer: ‘quanto poderemos produzir de poluição em função da nossa dimensão e da nossa contribuição para os objectivos que se estabelecem'? Cabe-nos uma quota, cabe-nos distribuir essa quota e vender essa quota às empresas que são poluidoras. As que necessitam mais de quota terão que pagar mais. Isto é a forma livre do mercado estabelecer o preço certo para a poluição. Quem necessita de poluir tem que pagar mais para ir buscar mais quota do que aquela que naturalmente lhe podia ser atribuída. Isso força as empresas a terem que investir em equipamentos e soluções menos poluentes.
A forma cega é tributar, tributar, tributar. Se eu aumento o imposto sobre a gasolina quem mais consome gasolina está a pagar o imposto mas não estamos a reduzir o consumo. Imagine que eu distribuo a uma pessoa ‘x’ litros por anos e digo ‘agora se quiser andar mais tem que pagar ao parceiro que andou menos’. É assim que se estabelecem os mercados dos direitos de poluição. É assim que já se faz com as indústrias mais poluentes.
O Governo repete várias vezes que foi o primeiro a comprometer-se com a redução em 2030. Acha viável esta meta?
Acho uma forma exagerada! Tudo é possível mas não estou a ver em função dos níveis de investimento que precisamos para sermos competitivos, para aumentar a produtividade e ainda para sermos menos poluentes. Há-de vir aí dinheiro que nunca mais acaba para tanto investimento! Sinceramente, acho que foi demasiado ambicioso, talvez naif, ingénuo ou talvez querer-se dar um ar de ‘vamos para a frente’. Estas metas são ambiciosas. Se esse é o objectivo nacional, então vamos ser coerentes. Isso significa que vamos apostar no transporte público, restringir seriamente o transporte privado. É dizer ‘meus amigos, atenção que vamos tributar ainda mais a gasolina’. Assim é que seria uma política coerente para chegarmos ao objectivo que se almeja.