O que quer, o que pode esta língua? Eles não fazem a mínima ideia
O elefante ortográfico continua na sala. E talvez até se passeie pela casa, na próxima legislatura.
Já passaram 35 anos desde que Caetano Veloso escreveu e gravou Língua (no LP Velô, de 1984), entregando o refrão, nesse quase rap, à voz-trompete de Elza Soares. Era assim: “Flor do Lácio Sambódromo/ Lusamérica latim em pó/ O que quer/ O que pode/ Esta língua?” Se esta pergunta for confrontada, hoje, com os programas dos partidos concorrentes às legislativas, as respostas serão, na esmagadora maioria, confrangedoras. Porque não fazem a mínima ideia. Anos e anos a encher os pulmões de fanfarronice linguística, com muitos números e escassíssimos resultados, e eis-nos a repetir os mesmos chavões da “afirmação” e da “internacionalização” da língua, enquanto por cá ela se contorce numa deformação contínua que parece não incomodar muita gente. Ainda assim, vale a pena olhar os programas e ver o que propõem.
Com uma nota prévia: na crónica anterior, não tinha sido possível ainda aceder a todos. Desta vez, dos 21 concorrentes, só dois ficaram de fora, por impossibilidade de encontrar os respectivos programas eleitorais: PTP e PPM. Os outros estão todos: Aliança, BE, CDS, CDU (PCP+PEV), Chega, Iniciativa Liberal, JPP, Livre, MAS, MPT, Nós Cidadãos, PAN, PCTP-MRPP, PDR, PNR, PS, PSD, PURP, RIR.
De todos eles, só dois têm um capítulo intitulado A Língua: CDS e PSD. Não é que proponham grande coisa, mas com isso mostram ao menos que o tema é digno de realce. O CDS começa pelo Acordo Ortográfico (AO90), dizendo que deve “ser avaliado” porque “a ideia central [uma ortografia unificada] falhou”. Depois vem a panaceia do costume: o “continuado esforço” na internacionalização da Língua (Instituto Camões, leitorados, escolas), “apoios nas traduções e na edição”, a “instituição do português como língua oficial da ONU” e “uma verdadeira política da língua”, com uma “iniciativa ambiciosa […] para a Língua Portuguesa como desígnio nacional”.
O PSD alinha por idêntico lavar de consciências. Também preocupado com o AO90 (“importa avaliar o real impacto”, porque a “uniformização […] não teve acolhimento”), mostra euforia com os números do costume (a quinta mais falada, a quarta mais ensinada, etc.), adiantando que “é possível fazer mais e melhor”: promoção, através das redes digitais, de obras e materiais “de apoio à aprendizagem do Português”, “reforço da rede de leitorados” e “traduções para diferentes línguas das obras de referência da literatura portuguesa” (o que promove a cultura, não a língua).
Já o PS, que tantas loas tece à “projeção da língua e das culturas de língua portuguesa”, alinha também na “difusão sistemática de obras referenciais da literatura portuguesa em traduções diretas e edições internacionais” (?!) e, a par disso, quer “aumentar a presença do português como língua curricular do ensino básico e secundário” no estrangeiro, “consolidar a presença regular de Portugal como país-tema de feiras internacionais do livro” e outros berloques em geral penduráveis na pasta do Kaiser que tomou conta da coisa: a dos Negócios Estrangeiros. Para isto, claro, “quer reforçar o papel da CPLP” e apoiar “a atividade” do inominável IILP.
Os outros partidos, ou não falam sequer da língua (PEV, JPP, MAS, PCTP-MRPP, PURP), ou dedicam ao tema curtas linhas e escassas ideias: o PCP fala em “valorização da língua e da cultura portuguesas” e repete este chavão em vários pontos; a Aliança fala em valorizar a língua “como elo unificador e potenciador da ‘marca’ Portugal” (!); o Chega quer “exigir o devido reconhecimento da língua portuguesa a nível internacional”; o MPT quer defendê-la “como elemento de identidade lusófona das nossas gentes através de acções bilaterais bem como no quadro da CPLP”; e, já que falamos de CPLP, esta consta dos programas do CDS, que quer reformá-la; do PS, que quer reforçá-la e aprofundar a sua “dimensão económica”; do Chega, que quer mesmo que ela evolua “para uma Comunidade Económica de Países de Língua Portuguesa”; do JPP, do Livre e do Nós Cidadãos (“reforço das responsabilidades”).
Neste ponto, já Caetano Veloso teria morrido de tédio ou escrito uma centena de canções. Mas ainda falta referir que são vários os que ligam a língua aos imigrantes (BE, PAN, PDR) e aos emigrantes e leitorados no estrangeiro (PS, CDS, Iniciativa Liberal, PNR); e os que dão relevância à consagração e ampliação da linguagem gestual (PAN, BE, PS, Livre, RIR).
O que falta? O malfadado Acordo Ortográfico. Lidos os programas, nove partidos aplicam-no, com um “deslize” ou outro (Aliança, BE, CDS, Iniciativa Liberal, JPP, Livre, PDR, PS, PSD), outros não o seguem na escrita (Chega, MPT, PCTP-MRPP, PDR, PNR, PURP, RIR), outros misturam as ortografias de 1990 e 1945 (MAS, Nós Cidadãos). E há o caso, único, o da CDU, que joga nos dois tabuleiros: o PCP não o aplica, o PEV (Verdes) aplica-o, mas nenhum, à cautela, fala dele.
Quanto a propostas para o AO90, afinal há mais: o CDS diz que “pode e deve ser avaliado”; o PSD idem (“importa avaliar o real impacto”); o Chega quer a “suspensão imediata […] e início dos trâmites necessários à sua revogação”; o PNR defende “anular o ‘Acordo Ortográfico’ nas escolas e repor o Português correcto”; o RIR propõe a “revisão da Lei do Acordo Ortográfico” (embora não haja nenhuma lei para o AO90); e o PDR quer, pura e simplesmente, a “revogação”.
Pelas omissões e vacuidades, percebe-se que, parafraseando um dito corrente, o elefante continua na sala. E talvez até se passeie ruidosamente pelos outros cantos da casa, na próxima legislatura.