Atleta, mulher, activista: Allyson Felix, a velocista que bateu o recorde de Bolt onze meses depois de ser mãe
Aos 33 anos, a norte-americana Allyson Felix soma mais medalhas de ouro em Mundiais de Atletismo que o jamaicano Usain Bolt. E fê-lo depois de ser mãe e de se tornar numa activista dos direitos das mulheres. Tóquio é o próximo desafio.
No secundário chamavam-lhe “pernas de galinha”. Era “demasiado magra” para ser corredora, diziam. Mas o seu primeiro treinador, Jonathan Patton, viu algo de especial em Allyson Felix. Esta terça-feira, a velocista norte-americana conquistou aos 33 anos a sua décima segunda medalha de ouro em Mundiais de Atletismo ao vencer, com a sua equipa, as estafetas de 4x400 metros nos Mundiais de Doha, ultrapassando assim o recorde do jamaicano Usain Bolt, que somou ‘apenas’ 11 medalhas de ouro em Mundiais. E o triunfo é tanto maior quando se constata que Allyson Felix voltou a conquistar o ouro depois de ter sido mãe há menos de um ano.
Allyson entrou de rompante no circuito internacional aos 17 anos, ao cumprir os 200 metros em 22,11 segundos. Na Cidade do México, perante mais de 50 mil pessoas, bateu uma antiga marca mundial de juniores — que no entanto não foi homologada por não existir controlo anti-doping naquele evento.
Nem um ano depois, aos 18, Felix já era medalhista olímpica — conquistou a prata nos 200 metros em Atenas, em 2004, apenas 0,13 segundos depois de Veronica Campbell, da Jamaica. Os seus 22,18 segundos estabeleceram um novo recorde mundial júnior (desta vez homologado). As restantes vitórias olímpicas não se fizeram esperar: ouro e prata em Pequim, em 2008, três medalhas de ouro em Londres, em 2012, e mais duas no Rio de Janeiro, em 2016, a somar a outra prata — três medalhas olímpicas de prata e seis de ouro.
“Durante grande parte da minha vida concentrei-me numa única coisa: ganhar medalhas”, escreveu Felix em Maio no New York Times. “E fui boa nisso. Aos 32 anos, era uma das atletas mais condecoradas da história: vencedora da medalha olímpica de ouro por seis vezes e onze vezes consagrada campeã mundial. Mas, no ano passado, o meu foco expandiu-se: queria ser uma atleta profissional e queria ser mãe. De certa forma, este era um sonho louco. Decidi começar uma família em 2018 sabendo que a gravidez pode ser ‘o beijo da morte’ na minha área”.
Um duelo entre a carreira e a maternidade
Um sonho louco que se tornou realidade quando Allyson deu à luz a sua filha Camryn em Novembro de 2018, num parto complicado: devido ao estado de pré-eclampsia (tensão arterial alta) a mãe e a bebé corriam risco de vida e os médicos decidiram fazer uma cesariana de urgência às 32 semanas de gravidez. As dificuldades em conciliar o seu papel enquanto mãe e atleta começaram depois do parto. "Foram tempos terríveis para mim porque estava a negociar uma renovação do meu contrato que tinha terminado em Dezembro de 2017 com a Nike”, refere a atleta.
Quando voltou às competições, a velocista, que tinha um contrato com a marca desportiva há quase dez anos, acusou-a de reduzir o seu vencimento em 70%. A disputa entre a norte-americana e a empresa acabou por envolver inúmeras mulheres desportistas, há muito forçadas a optar entre os papéis de mãe e de atleta de alta competição. O artigo em que a atleta conta a história da sua gravidez, escrito na primeira pessoa e publicado no The New York Times acabou por impulsionar todo um movimento.
“Se tivermos filhos, corremos o risco de receber cortes por parte dos nossos patrocinadores durante a gravidez e depois dela. É um exemplo de como as regras da indústria do desporto ainda são pensadas principalmente para homens. Durante as negociações, pedi à Nike que garantisse contratualmente que eu não seria punida se não estivesse no meu melhor desempenho nos meses a seguir ao parto. Queria estabelecer um novo padrão de negociações. Se eu, uma das atletas mais trabalhadas pela Nike, não pudesse garantir essas protecções, quem poderia?”, explica a atleta.
Em Maio, marcas como a Burton, Altra, Nuun e Brooks anunciaram novas garantias contratuais para atletas que têm filhos e que poderão agora manter os seus patrocínios. Poucas semanas depois, também a Nike anunciou que não reduziria os salários às atletas grávidas durante um período de 12 meses pós parto, período que foi depois alargado para 18 meses. Allyson acabou por não renovar contrato com a Nike e transitou para a concorrente Athleta.
Depois da vitória desta semana, que sela o recorde de 12 medalhas de ouro em Mundiais, Allyson Felix trabalha já para o próximo desafio. A atleta tem os olhos postos em Tóquio 2020, naqueles que serão os seus quintos Jogos Olímpicos — mais uma medalha de ouro e a velocista será, segundo descreve o Olympic Channel, “imortal e, indiscutivelmente, a melhor de todos os tempos”. Isto, no entanto, sem esquecer os seus novos (e velhos) papéis: “atleta, mulher, activista”.
“Os atletas são instruídos para se calarem e jogarem. Dizem-nos que ninguém se importa com as nossas opiniões, que somos apenas artistas portanto temos de correr rápido, pular alto e atirar para longe. E não estragar o resto”, escreve Allyson no artigo publicado no NYT. “Mas a gravidez não é estragar nada. Para as mulheres, esta pode e deve ser capaz de fazer parte de uma próspera carreira atlética profissional”.