Dizem os mais antigos que, por alturas do Estado Novo, decorar era peça fundamental do sistema educativo. O meu pai não frequentou a escola durante muitos anos, mas ainda hoje me surpreende a facilidade com que ele recorda o nome de qualquer rio ou serra em Portugal. Os meus primos mais velhos ainda são do tempo em que decorar a tabela periódica era estimulado através de mnemónicas, já eu até dicionário podia levar para os testes de língua estrangeira. Foi assim que, com toda a naturalidade, a maioria dos que cresceram de braço dado com a evolução do Google foram levados a acreditar que o tradicional “saber na ponta da língua” não voltaria a ser necessário.
Não tenho aqui intenção em defender a utilidade de conhecer a massa atómica do gás nobre criptónio; no entanto, se é a necessidade quem melhor aguça o engenho, a falta de estímulo nas escolas tem vindo a diminuir a nossa capacidade de memorização geral. Com acesso a menos memórias, a oportunidade de ligação entre elementos reduz-se e os raciocínios vêem-se limitados; logo, surgem também menos ideias ou soluções. Ainda assim, todos esperam e julgam haver condições para que os millennials sejam mais criativos e tenham mais momentos “Eureka!”.
A maioria de nós tem vindo a abusar dos dispositivos electrónicos enquanto auxiliares de memória, algo que até já nos tem classificado como cyborgs de primeira geração. Mesmo que as próximas décadas venham optimizar o acesso à memória e ao conhecimento pela via digital, hoje os ambientes sociais e profissionais são competitivos e premeiam a rapidez na hora de tirar a ilação certa no momento oportuno. Se não fores o mais rápido a estabelecer o paralelismo entre uma memória passada e a dificuldade presente, tipicamente meio caminho andado até resolver um problema, alguém o fará antes de ti. Escusado será dizer que com ele levará a tão desejada promoção no final do ano, ao passo que o comum dos millennials continua a aguardar que a evolução do digital o torne um cyborg mais ágil e competitivo.
Recentemente fui investigar estratégias que me permitam não voltar a ficar reticente na hora de digitar o código pin antes de um pagamento. Descobri um sistema de mnemónicas inicialmente desenvolvidas por Pierre Hérigon onde são criadas correspondências entre sons de algumas consoantes e números de 0 a 9. Na prática, associei o pin de quatro dígitos a outras tantas consoantes e com alguma criatividade preenchi as vogais que me permitem memorizá-lo, curiosamente uma capicua, como “RouBo o BaR”. Fecho os olhos e imagino o meu cartão bancário com pernas a fugir de um bar sem pagar a conta. Trata-se de uma visão idiota o suficiente para que não a voltar a esquecer. Mais importante ainda, tenho agora acesso à ferramenta adequada para memorizar todos os números de que precise; no entanto, procuro também desenvolver o uso de novas técnicas que me permitam memorizar conceitos de outras naturezas.
A minha memória continua metida em sarilhos, mas procuro provar o contrário a quem me diz já ser tarde demais. Com um olhar no futuro vejo que o nosso ponto diferenciador, em comparação com a automação e a inteligência artificial, reside precisamente na criatividade, recurso esse que é fundamental durante o processo de memorização. Com acesso eficaz a mais memórias geram-se mais ligações entre conceitos e ser criativo surge com outra naturalidade. É este ciclo com um elemento chave comum que me leva a propor que voltemos a estimular os alunos nas escolas a memorizar mais e melhor fornecendo-lhes acesso às técnicas adequadas. No final de contas, memorizar o máximo número de algarismos do Pi pode ser um desafio tão ou mais divertido do que o consensual jogo do 24.