O que pode a arte fazer pela cidade mais açoriana dos Estados Unidos?
Por estes dias, o Fabric Arts Festival tenta reinventar um futuro pós-industrial para Fall River. Para já, a comunidade mostra-se curiosa e expectante porque “nunca viu nada assim”.
“As artes podem ser um factor de desenvolvimento e não apenas entretenimento”. A frase faz-se ouvir logo na sessão de inauguração. É uma evidência nem sempre compreendida e assimilada. Interessa, portanto, repeti-la, como aconteceu na noite de quarta-feira numa das amplas salas do Narrow Center For The Arts, em Fall River, no estado do Massachusetts. Convém também demonstrá-lo com acções concretas. Daí o Fabric Arts Festival, que até sábado leva música e artes (cinema, graffiti, instalação) a vários espaços de Fall River, procurando inspirar um novo olhar sobre a cidade.
O nome liga-se directamente à história desta comunidade, que floresceu desde o final do século XIX a partir de uma fortíssima indústria têxtil ("fabric" é a palavra inglesa para tecido). Criado por um luso-descendente, Michael Benevides, que chegou a Fall River aos dois anos, vindo da ilha açoriana de São Miguel, o novo festival da cidade surgiu de uma estreita colaboração com alguns dos organizadores dos festivais micaelenses Walk & Talk e Tremor. A sua ambição é transformar esta cidade americana de 90 mil habitantes que constitui, em termos proporcionais, a maior comunidade açoriana dos Estados Unidos.
Steve Rigo abre um sorriso expectante. “Estou ansioso por ver. Ainda não fui lá acima. Só vou quando a minha mulher puder”. Estamos no café do andar térreo do Fall River Carousel, o carrossel centenário que é espaço emblemático da cidade. Steve é o responsável pelo café e, nos últimos dias, viu como foi trabalhando a dupla formada por Jonathan Saldanha e Catarina Miranda, artistas sediados no Porto. São 18h, o carrossel roda há cerca de uma hora e este neto de portugueses vindos de São Miguel, como tantos na cidade, quer testemunhar o primeiro sinal de actividade do Fabric.
O primoroso carrossel de madeira é uma preciosidade à beira do rio Quequechan. Com vista surpreendente: ancorados ali mesmo estão navios, fragatas e um submarino, combatentes da Segunda Guerra Mundial transformados no Battleship Cove, museu flutuante que se ergue dominador na paisagem. Naquele dia, o carrossel não opera como habitualmente. Um fumo espesso transforma as pessoas em sombras difusas, fortes luzes vermelhas juntam-se aos sons electrónicos, qual tecno febril em jogo vídeo da década de 1980, que parecem dar mais velocidade ao rodopio. O passado longínquo da estrutura transforma-se em sonho carpenteriano, em futuro nublado. Os passageiros riem e mergulham estupefactos no ambiente. É o mesmo espaço e é uma outra coisa. É aquilo que os directores artísticos do festival, Michael Benevides, Jesse James e Sofia Botelho (do Walk & Talk) e António Pedro Lopes (do Tremor) pretendem que o Fabric seja.
Uma fábrica de futuro
Cidade sem centro definido, a paisagem de Fall River é marcada pelas casas vitorianas que polvilham vários bairros e pelos vestígios ainda muito presentes das fábricas, com os grandes edifícios de vermelho tijolo e as suas altíssimas chaminés. Algumas estão ainda em funcionamento, outras foram convertidas em edifícios de habitação, em espaços como o Portugalia Marketplace, especializado em gastronomia portuguesa (e dirigido por Michael Benevides), ou o Narrow Arts Centre, fundado há 19 anos e reunindo nos seus cinco andares ateliers, auditório e salas de concertos. Caminhar pelas ruas é testemunhar a cada momento a presença da comunidade açoriana, a maior da cidade. Com as vagas migratórias vindas maioritariamente de São Miguel no início do século XX e, depois, nos anos 1960 e 1970, para trabalhar nos têxteis ou na indústria naval, os açorianos e seus descendentes chegaram a constituir cerca de metade da população de Fall River. “As famílias chegavam ao fim do dia e, às 6h da manhã, já estavam a trabalhar nas fábricas”, conta ao PÚBLICO Francisco Viveiros, o presidente da Casa dos Açores de Nova Inglaterra, organizadora do festival.
Abundam os restaurantes e cafés portugueses. No Ponta Delgada Boulevard, ergue-se uma réplica das emblemáticas Portas da Cidade da capital de São Miguel. Por todo o lado, placas de diversos serviços e empresas cujos apelidos indicam a descendência portuguesa. Inesperadamente, surgem marcas mais subtis, como o rádio num alpendre que, numa tarde calma, emite o relato de um Sporting-Rio Ave. É aqui que o Fabric se instala, numa cidade que tenta reconverter-se após a quebra da indústria têxtil que era o centro da sua economia, que lida com as consequências dessa depressão (o desemprego, o aumento da criminalidade), e que acolhe novas comunidades imigrantes, como a porto-riquenha.
O Fabric sugere a arte como potencial de mudança, como agregador de comunidade, como redescoberta – no âmbito do festival, foi criado um novo guia cultural da cidade, forma de mostrar aos seus habitantes as riquezas que esta tem e as que não sabia que tinha. Nas ruas, trabalha-se em novos murais, no Narrow Arts Centre projectam-se filmes e vídeo-arte, ligados directamente aos Açores.
No sábado, último dia de festival, aquilo que vai acontecendo de forma mais contida extravasará para as ruas. A Purchase Street Square será fechada ao trânsito e o edifício da Police Athletic League abrirá as suas portas ao público. Actuarão filarmónicas açorianas de Fall River, a portuguesa Lula Pena, as americanas Kelsey Lu e Mal Devisa e os Dowtown Boys, de Providence.
Agora, estamos ainda no momento em que Steve Rigo, antes de experimentar o carrossel, nos diz: “Estou muito feliz [com o Fabric] porque sou português. E estou muito curioso e expectante porque nunca vimos nada assim aqui.” Agora, estamos na South Main Street, a ouvir Rene Gagnon, enquanto este, nascido na cidade e hoje nome de relevo no universo da street art, trabalha no seu mural. Está a criá-lo na fachada do antigo cinema Capitol, agora desactivado, e nele veremos a História a recontextualizar-se – o olhar da actriz Eleanor Powell, que nos anos 1950 era presença frequente nos billboards do cinema, e padrões art-deco que, explica o artista, sugerem a textura dos tecidos produzidos na cidade.
Foi nestas ruas que Gagnon começou a pintar graffiti nos anos 1980, foi nestas ruas que foi detido inúmeras vezes por fazê-lo. A última vez que pintou um mural na sua cidade foi em 1992. Para ele, este é portanto um momento importante. Diz que o Fabric pode ser uma oportunidade. “Chamará até Fall River as pessoas que seguem os circuitos da street art. Além disso, os miúdos e as pessoas daqui sentir-se-ão inspirados. Cresceram nestas ruas e sentirão que também eles podem fazer o mesmo.” Comunidade em formação, em transformação. Uma possibilidade e uma ambição: ser fábrica de futuro.
O PÚBLICO viajou a convite do Fabric Arts Festival