Precariedade rima com (in)sanidade

A definição de bolseiro pressupõe que o mesmo é um ser híbrido. Dado que não existe a nível jurídico e laboral, isto é o mesmo que dizer que o bolseiro não adoece, não faz descontos para a segurança social, embora o exercício da função possa contar para tempo de serviço, e está sempre disponível.

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Nuno Ferreira Santos

Há um véu que tapa o drástico nível de precariedade nas universidades, relativamente ao estatuto de bolseiro de investigação científica. A ideia de que é um “emprego” prestigioso e uma mais-valia incontornável para o país não é mentira nenhuma, salvaguardando o termo “emprego”. Sim, trabalho há muito e sem dúvida que é de uma qualidade significativa. Aliás, como se pode comprovar pelos inúmeros prémios, reconhecimentos e menções com que somos bajulados, especialmente no estrangeiro.

Contudo, chamar “emprego” a uma bolsa de investigação é estilhaçar a corda semântica do termo. Como podemos ler no artigo 4.º do Estatuto do Bolseiro de Investigação, que vigora em Portugal, a natureza do vínculo é definida da seguinte forma: “Os contratos de bolsa não geram relações de natureza jurídico-laboral nem de prestação de serviços, não adquirindo o bolseiro a qualidade de trabalhador em funções públicas.” Vejamos, o bolseiro já não é um estudante, mas também não é considerado como trabalhador. Mas posso garantir-vos que, salvo raríssimas excepções, o bolseiro trabalha e muito, talvez demasiado.

Na tentativa de comentar atenciosamente esta definição podemos afirmar que a mesma pressupõe que o bolseiro é um ser híbrido. Dado que não existe a nível jurídico e laboral, isto é o mesmo que dizer que o bolseiro não adoece, não faz descontos para a segurança social, embora o exercício da função possa contar para tempo de serviço, e está sempre disponível para tudo o que for necessário, quer seja ligar ao canalizador ou publicar o tal artigo que estava na gaveta. Já para não falar que os concursos são públicos, logo para trabalhar num sector do Estado, mas o bolseiro não exerce “funções públicas.” Estão aqui a faltar algumas lições de português.

Tudo isto se apresenta de um modo bastante caricato — o que já não é tão engraçado é o estado da saúde mental desses mesmos bolseiros. A rima implica uma relação directa entre um trabalho precário e uma saúde mental débil. Há já algum tempo que uma amiga de Medicina me confessou que nós não fazíamos ideia de como estava atolada de estudantes a ala psiquiátrica. Há cerca de um ano apercebi-me que por estudantes ela incluía uma grande parte de bolseiros de investigação.

Mais recentemente, e de um modo mais pessoal, tomei consciência de como a natureza indefinida deste trabalho afecta a estabilidade emocional, pessoal e mental de todos aqueles que querem fazer parte deste mundo. E como já deve ou devia ser óbvio, a instabilidade e a insegurança não geram um trabalho consistente e de qualidade. Até porque se nesta instabilidade já conseguimos ser reconhecidos entre os melhores, então imagine-se o que se alcançaria com uns alicerces decentes. Tal deveria fazer-nos reconsiderar o modo como o ensino superior está estruturado.

Infelizmente vi partir, tanto para o estrangeiro como para outras carreiras, um elevado número de pessoas competentes, responsáveis, sensíveis e com um elevado sentido de rigor social. Fica aqui um abraço de conforto e compreensão a quem luta todos os dias por mais e melhor conhecimento para si e para o país.

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