Vale a pena ir votar?
Sem entusiasmo, lá iremos à urna. Mas tentaremos não esquecer que a urna foi o recipiente que, não poucas vezes na História, serviu como caixão da democracia e da dignidade humana.
Vou acompanhando a campanha eleitoral, mas com escassa vontade. Só lhe dou alguma atenção quando me entra pela casa adentro e, mesmo assim, por pouco tempo. Não aguento mais do que uns minutos por dia. Afinal, há quatro anos que a propaganda está em marcha nas suas mais variadas, desvairadas e perigosas formas. Se assim não fosse, há muito que a cauda pelada do gato escondido teria sido topada pela esmagadora maioria do eleitorado – e não seria possível termos a nuvem ameaçadora de um agrupamento partidário à beira da maioria absoluta no Parlamento.
Apetecia-me desligar, dar de frosques e voltar lá para dia 7 ou 8 de Outubro. Ou ficar por melhores partes. Tenho pouca vontade de ir votar, sou sincero. Irei, todavia, quase como cão por corda. Leitor que fui de Karl Popper, penso que não devo preocupar-me demasiado com o perfil de quem será eleito, mas com a melhor maneira de varrer de São Bento aqueles que nos têm bandarilhado ou estocado de sorriso na boca. Faço parte do grupo daqueles que confiaram no gerente da nação e, numa fase inicial, até torceram pela “gerigonça” – mas depressa se viram obrigados a bater com a mão no peito, dizendo ou murmurando mea culpa, mea maxima culpa. Mesmo que a comunicação social estatal tenha calado alguns dos veículos jornalísticos que puseram a nu os objectivos e as práticas do poder da mão fechada (como oportunamente denunciou Eduardo Cintra Torres), as evidências do que sucedeu ao longo destes quatro anos e do que poderá suceder caso o grupo de interesses do Largo do Rato obtenha o poder absoluto são demasiado graves para que eu me deixe vencer pela abulia. Só não vê quem não quer ver, quem tem interesses em manter-se cego ou então quem lucra com a promoção da cegueira.
Procuram-se alternativas. O cenário é, porém, quase só de rebotalho. Pouco existe que nos dê uma esperança, que nos faça acreditar numa meta que valha a pena alcançar. Olhamos em volta e pouco há que não gere um bocejo ou vontade de vomitar.
Um – sabendo que mente – promete tudo e o seu contrário, sobretudo carcanhol e mercadoria barata, como se fosse o protagonista engravatado do reclame numa feira de província, atafulhando os ouvidos dos eleitores com desvairadas promessas, sabendo que nunca irá cumpri-las. Descobriu, todavia, que essa é a melhor maneira de levar ao esquecimento do que não fez porque nunca quis fazer ou soube fazer e, pior, do que fez e não deveria ter feito. Conhece as consequências a longo prazo dos seus actos e dos actos daqueles que o acompanharam (às claras ou na sombra), mas tem esperança de que o lamaçal futuro não chegue a tocar-lhe as unhas dos pés.
Outra canta como a sereia, com voz afinadinha e bem colocada de actriz que apenas mudou de palco, procurando convencer os incautos (e há muitos) a mergulharem no seu lodaçal onde há mosquitos por cordas, seja sob que ponto de vista for. Convém-lhe o ar modernaço, fracturante, pois sabe que a maioria dos eleitores prefere ser modernaço a ter uma atitude ética e consequente perante a vida. Ganha com o implante na sociedade de uma eterna adolescência, pois é garantia de continuidade (e de sucesso) dos propósitos do seu grupo, que já nem se dá ao trabalho de esconder.
Olhamos para outro lado – e assistimos a uma briga de gatos mais ou menos assanhados pela posse saiba-se lá do quê. Nem se dão conta do grupo de bicharocos que irá roubar-lhes a vianda, deixando-os em petição de miséria. Sobreviverá a democracia portuguesa sem uma oposição digna desse nome? A resposta não nos deixa tranquilos.
Pela viela pouco limpa em que este país se vai transformando, apesar do seu cosmopolitismo de fachada, há depois a voz artificial de uma figura que não convence nem o galo de Barcelos, mesmo quando apresenta propostas válidas. Parece não ter ainda descoberto que os portugueses podem ser cabeças-no-ar, mas topam à légua os cançonetistas que não sabem cantar nem sequer aproveitar-se das vantagens do playback ou do karaoke político.
Num certo beco, quase a transformar-se em avenida (cheia não obstante de buracos traiçoeiros), vemos uma silva sem amoras a pôr tudo no mesmo saco, atirando para igual taleigo os seres humanos e as lesmas da Porcalhota, ao mesmo tempo que se lixa para a degradação do ambiente natural e humano. Nem sequer esconde as suas ânsias, como bom guia de um grupo fundamentalista que deseja impor aos outros a sua estreita e pouco informada visão do mundo e da sociedade. A criação de homem novo, de má memória, anda na mentalidade recauchutada da sua agremiação…
Noutros bardalhais, ouve-se música repetitiva directamente do computador (que as cassetes estão fora de moda); só os fãs têm paciência para a cantilena... Temos ainda os pequeninos, saltaricos, que tentam pôr-se em bicos de pés para chegarem ao saboroso produto das mais altas prateleiras, pois no fundo o seu apetite não é muito diferente do dos graúdos.
Vê uma criatura de Deus este desfile e pensa que o melhor é ficar em casa no próximo dia 6 de Outubro. Ou emigrar para Pasárgada, como o poeta Manuel Bandeira. Mas o grilo do dever azucrina os ouvidos... E a lembrança recorda-nos que, apesar de limitada por estratégias de subversão bem montadas, ainda se guarda em Portugal a semente de uma democracia por fazer. Reparamos então que há duas ou três figuras que, talvez por ingenuidade política ou pessoal, vão dizendo o que pensam e não o que os eleitores parvos ou sacanas querem ouvir. É pouco, mas dá para respirar... Não entusiasmam ninguém, mas ainda assim distinguem-se da sua vizinhança tão pouco recomendável.
Sem entusiasmo, lá iremos à urna. Mas tentaremos não esquecer que a urna foi o recipiente que, não poucas vezes na História, serviu como caixão da democracia e da dignidade humana.