“Correr risco imediato de vida” na ADSE
O doente oncológico, seja ou não funcionário público, morre em Portugal sem aceder a um medicamento que lhe poderia eventualmente ter prolongado a vida mas de consciência tranquila: foi um bom cidadão, que contribuiu, nesta última fase da sua vida, para a excelente afetação dos recursos da ADSE.
Sempre atentos e preocupados com o nosso bem-estar, os responsáveis pela ADSE aguardaram pelo fim das férias para aplicar a medida que limita o financiamento por este subsistema de novos medicamentos oncológicos, ainda que já autorizados pela Agência Europeia de Medicamentos, quando não haja decisão de os financiar por parte do SNS ou não tenha sido obtida a prévia autorização de utilização excecional. Esta será dada mediante parecer prévio do Infarmed, no âmbito de um programa elegantemente designado por “PAP” (“Programa de Acesso Precoce a Medicamentos”). O parecer só será favorável, esclarecem-nos, “em casos imperiosos para a saúde do doente, designadamente quando o mesmo corra risco imediato de vida ou de sofrer de complicações graves”.
O direito de todos ao acesso à inovação em saúde consagrado na nova Lei de Bases da Saúde, que também foi publicada na reentrée, é, deste modo, exercitado em matéria de doenças oncológicas, com limites. Um deles pode ser, como referido, o de haver “risco imediato para a vida” do doente. Como se pode ler nas notícias divulgadas na comunicação social, este risco, felizmente, tem raramente sido constatado pelo Infarmed, não sendo muito frequentes os pareceres favoráveis ao acesso às novas terapias, no âmbito do “PAP”. “Risco imediato” significa, como a expressão indica, risco quase instantâneo, a ocorrer num futuro muito próximo: por exemplo, o que corre uma pessoa de se afogar em mar alto se não souber nadar e não usar braçadeiras ou o de morrer por esmagamento se um piano com armação de ferro lhe cair em cima. Por sorte, os doentes oncológicos em Portugal raramente se encontram nessa situação. Podem aguardar, tranquilamente, a eventual metastização do tumor e morrer, com grande probabilidade, de uma “infeção oportunista”, causada pela redução das defesas do seu sistema imunitário.
Como o direito de todos à proteção da saúde está, felizmente, também consagrado na nova Lei de Bases, a ADSE assegura aos servidores do Estado a comparticipação adequada e atempada de antibióticos, anti-inflamatórios e outros fármacos essenciais ao controlo dessas infeções. Há, ainda, a preocupação de lhes facultar os cuidados continuados e paliativos adequados e a que também têm direito por lei, enquanto o iminente risco de morte não ocorre. Deste modo, o seu bem-estar físico, psíquico e espiritual é integralmente assegurado enquanto não tomam o medicamento que poderia, eventualmente, prevenir a efetiva progressão da sua doença. Morrem sem tosse, rouquidão ou febre, com um familiar a segurar-lhes a mão. Uma morte digna e em paz, em que disporão do indispensável tempo para se despedirem da família e amigos e organizarem a transmissão do seu, em regra, parco património.
Será adequado o recurso aos critérios “correr risco imediato de vida ou de sofrer de complicações graves” para avaliar a adequação da decisão de comparticipar o pagamento destes novos fármacos, uma vez que muitas vezes o seu objetivo é essencialmente curativo e não paliativo? Será equitativo que o Estado não garanta o acesso imediato a eles a todos os beneficiários do SNS, encontrem-se ou não abrangidos pela ADSE? Será aceitável limitar, com base nas decisões tomadas no âmbito do SNS, o direito de acesso à inovação dos beneficiários da ADSE, subsistema público financiado pelos descontos dos funcionários públicos, que visa complementar a proteção sanitária que lhes é dada no âmbito do SNS? Certamente estas questões foram devidamente equacionadas por quem com os servidores do Estado tanto se preocupa.
Esta medida afigura-se, ainda, essencial para prevenir a litigiosidade na área da Medicina Oncológica. O médico não poderá ser responsabilizado por não ter prescrito um tratamento inovador não comparticipado pela ADSE, quando o doente, se for um servidor do Estado médio, não tiver os necessários recursos para o pagar a título privado. Que pena que os funcionários públicos portugueses não ganhem para férias periódicas nas ilhas gregas, onde alguns destes tratamentos já se encontram acessíveis aos cidadãos! Alguns pacotes de férias poderiam, mesmo, prever a estadia em hospitais oncológicos, cheios de sol e próximos do mar, se houvesse ulterior possibilidade de reembolso das despesas efetuadas com o consumo de fármacos inovadores, cujo financiamento não tivesse sido ainda aprovado no âmbito do SNS, nem autorizado, a título excecional, pelo Infarmed.
O doente oncológico, seja ou não funcionário público, morre, deste modo, em Portugal, sem aceder a um medicamento que lhe poderia eventualmente ter prolongado a vida, de consciência tranquila: foi um bom cidadão, que contribuiu, nesta última fase da sua vida, para a excelente afetação dos recursos da ADSE, para que esta goze ainda de melhor saúde financeira ou para a gestão equilibrada do SNS. No momento em que o “risco imediato” de morte finalmente ocorre, o doente oncológico tem uma iluminação súbita: talvez o dinheiro que não foi com ele despendido seja utilizado para combater incêndios, com adequadas máscaras de proteção contra a inalação de fumo que previnam que outros fiquem, também, em risco imediato de morte….
Sempre atenta e preocupada connosco, a ADSE.
A autora escreve segundo o novo Acordo Ortográfico