Ric Ocasek, o músico discreto que sintetizou novos mundos pop
Era naturalmente o sol à volta do qual os outros gravitavam, diziam os companheiros nos Cars. Guitarrista, cantor e compositor, aprimorou a sua arte na sombra antes de, com os Cars, fundir new-wave, pop, synth-pop e rock’n’roll e transformar-se numa das bandas essenciais da década de 1980. O autor de Drive ou Good times roll morreu no domingo, aos 75 anos.
Era homem de poucas falas e muita acção. Ric Ocasek sabia o que queria desde que ouvira Buddy Holly & The Crickets na pré-adolescência, ritmo a chocalhar o corpo e aquele canto meio soluçado a libertar a imaginação. A guitarra chegou aos 14 anos, oferecida pela avó. Estávamos em 1958 e vinte anos e muitas bandas depois, Ocasek anunciava-se ao mundo. The Cars, o álbum de estreia homónimo da banda que fundara dois anos antes, abraçava a emergente new-wave, cruzava arranjos de sintetizadores com guitarras à Byrds, cintilância Roxy Music e ecos do velho Buddy Holly — tudo coberto com uma apurada sensibilidade pop. Durante dez anos, os Cars e as canções de Ocasek foram parte determinante da paisagem musical. As canções: para Ric Ocasek, eram elas o início e o fim de tudo.
Na tarde deste domingo, o autor de Drive, Just what I needed ou Shake it up, o produtor dos Suicide, dos Bad Brains, dos Weezer, dos Guided By Voices das Le Tigre ou dos No Doubt foi encontrado sem vida na sua residência em Manhattan, confirmou a polícia de Nova Iorque ao Washington Post. As causas da morte não foram reveladas. Ric Ocasek tinha 75 anos e deixa uma obra que marcou indelevelmente a década de 1980, construindo com os Cars uma ponte entre o sucesso pop mainstream e a contracultura punk e new wave.
Músico, pintor, poeta
Filho de um analista informático da NASA, Ric Ocasek cresceu em Baltimore e mudou-se com a família para Cleveland aos 16 anos. As memórias da infância e adolescência não eram as melhores. Numa entrevista à Rolling Stone, em 2011, quando da reunião dos Cars de que resultou o álbum Move Like This, contou que, quando comprou o primeiro disco de Bob Dylan, o pai exigiu-lhe que nunca mais tocasse aquela música em casa — o mesmo pai que o recriminava quando levava amigos negros a casa: “Como te atreves a trazer um negro ao nosso bairro?”. Ric Ocasek tinha a música e dela faria a sua vida. Abandonou precocemente a universidade e, com Benjamin Orr a seu lado, futuro baixista dos Cars e voz principal em algumas das canções mais emblemáticas da banda (Drive, Just what I needed), iniciou um longo percurso que passou por várias experiências e encarnações antes de chegar à banda a que ficará para sempre associado.
Em 1973, inspirado pelos Crosby, Stills & Nash, tentara o folk-rock assente em harmonias de voz cristalinas nuns Milkwood que deixaram como legado How’s the Weather, álbum esquecido (ontem e hoje). Depois dos Milkwood chegaram os Richard And The Rabbits, depois deles os Cap N’Swing e, em 1976, nasceram oficialmente os Cars. Eram formados por Ric Ocasek (vocalista, compositor e guitarra ritmo), por Benjamin Orr, pelo guitarrista Elliot Easton, pelo teclista e saxofonista Greg Hawkes e por David Robinson, baterista que pertencera anteriormente aos Modern Lovers de Jonathan Richman. Eram uma banda com líder natural e incontestado. “Nunca me juntei a uma banda. Nunca estive na banda de outra pessoa”, recordava Ocasek na entrevista supracitada à Rolling Stone. “Fui sempre o primeiro membro e eles têm sempre que tocar as minhas canções. Não iria tocar as de mais ninguém”. Tudo isto era pacífico entre os restantes Cars: “A composição de canções, de uma forma profunda, é o instrumento de Ric. É nada menos que natural que ele seja o sol à volta do qual gravitam os restantes planetas”.
O longo período formativo revelar-se-ia determinante na forma como Ocasek definiu o som dos Cars. Também pintor (a sua pintura abstracta, recorrendo por vezes à colagem, foi exposta em galerias americanas já no século XXI) e poeta com obra publicada (a colecção de poesia Negative Theater foi publicada em 1992), o guitarrista adaptou de forma magistral a apelo intemporal da pop clássica e do rock’n’roll à modernidade do seu tempo, quer ela fosse representada pela synth-pop, quer se manifestasse na new-wave que sucedeu à explosão punk e na qual os Cars tiveram papel determinante — curioso que o futuro produtor dos Suicide, punk minimalistas, electrónicos, escolheu como produtor dos primeiros álbuns dos Cars o homem responsável pela criações polidas e cristalinas dos Queen, Roy Thomas Barker. Ao mesmo tempo, a banda mostrou-se perfeitamente consciente da importância da construção de um imaginário visual, essencial na alvorada da era da MTV — You might think foi distinguido em 1984 como Vídeo do Ano nos primeiros MTV Awards, vencendo a concorrência do histórico Thriller, de Michael Jackson; no mesmo ano Andy Warhol realizou o vídeo de Hello again, outra canção do álbum Heartbeat City, e até figurou nele enquanto empregado de bar.
Influências eternas
Durante os dez anos da primeira existência da banda, os Cars foram um sucesso de vendas — mais de vinte milhões de discos vendidos, só nos Estados Unidos —, criadores respeitados pela crítica e uma banda cuja influência se revelaria surpreendentemente abrangente. Na hora da sua morte, os tributos chegam de bandas de que foi produtor, com os Weezer, de músicos com quem trabalhou ao longo dos anos (Nile Rodgers, Courtney Love), de Billy Idol, de Flea, dos Red Hot Chilli Peppers, do produtor e rapper El-P, do fã assolapado Brandon Flowers, dos The Killers, ou de Carl Newman, dos canadianos New Pornographers, que escrevou no Twitter: “Nunca deixarei de imitar o primeiro álbum dos Cars. A sua influência permanecerá para sempre comigo”.
À estreia homónima dos Cars sucederam-se Candy-O (1979), Panorama (1980), Shake it Up (1981), Heartbeat City (1984) e Door to Door (1987). A banda terminaria após a digressão de promoção a este último. Se Ric Ocasek, introspectivo e pouco confortável com a vida de palco, já se sentia naturalmente intimidado com as grandes digressões, a que se sucedeu a Door to Door, com a banda a viajar para os concertos separadamente e com a amizade de longa data entre Ocasek e Benjamin Orr seriamente comprometida, tornou inevitável a separação.
Nos anos seguintes, Ocasek dedicar-se-ia à continuação da sua carreira a solo, que iniciara em 1982, com Beatitude, e à produção (estreara-se nessa função em 1980, com o segundo álbum dos Suicide). O seu último álbum a solo chegou em 2005 (Nexterday), seis anos antes de reunir novamente os Cars, sem Benjamin Orr, que um cancro pancreático levara em 2000, para a gravação de Move like this. Pelo meio foi Vice-Presidente de A&R da Elektra, cargo em que não durou mais que um ano — o rumo que quis dar às novas contratações da editora, tentando assinar Devendra Banhart ou os Death Cab For Cutie, não foram propriamente do agrado dos seus superiores.
Casado três vezes, a última das quais com a modelo e actriz Paulina Porizkova, que conhecera nas filmagens do vídeo de Drive e com quem formou um casal até 2017 (foi Paulina que encontrou o seu corpo já sem vida este domingo) e pai de seis filhos, Ric Ocasek foi um esteta da canção, um criador particularmente hábil na conjugação de diferentes universos musicais no espaço de uma canção. “De certa forma, julgo que estamos sempre a compor a mesma canção e não há problema nenhum nisso”, dizia em 1987 ao New York Times. “Os japoneses andam a fazer as mesmas peças há dois mil anos, e os haiku são habitualmente sobre os mesmos temas, temas ligados à natureza. Julgo que é um processo igualmente criativo tentar trazer nova luz a uma velha situação, ao romance.” Os seus dez anos nos Cars comprovam-no sem margem para dúvidas.