Boris e Salvini: o feitiço contra os feiticeiros
O que nos mostram o Reino Unido e a Itália é que perante uma ameaça séria de conquista do poder por líderes populistas, as forças democráticas, caso se unam, podem criar-lhes enormes dificuldades.
E se as razões que colocaram no poder os populistas identitários forem as mesmas que os podem tirar do poder? As recentes derrotas de Boris Johnson e Matteo Salvini são indícios de que o feitiço se pode virar contra os feiticeiros.
Anunciar hoje a morte da democracia liberal é tão prematura, como foi a do seu triunfo definitivo há 30 anos, com o colapso da alternativa comunista, como alerta Yascha Mounk na revista Foreign Affairs.
Uma história é a dos líderes populistas identitários na oposição, outra, bem diferente, é a de quando chegam ao governo. Os populistas prometeram devolver o poder ao povo e autoproclamaram-se porta-vozes da indignação popular perante a “arrogância das elites liberais ao serviço dos interesses da alta finança”. No poder, mostram uma enorme incompetência, o seu autoritarismo torna-se evidente e a corrupção aumenta, como mostra um estudo recente. Os governos populistas beneficiam os hiper-ricos que diziam combater, como é o caso de Donald Trump. Já o caso do Brasil é paradoxal, porque Jair Bolsonaro nunca escondeu que estava ao serviço de uma das elites mais vorazes e predadoras do Mundo.
No poder, os populistas identitários tomam medidas para desconstruir o Estado de Direito, controlar os órgãos de comunicação e monopolizar o uso das redes sociais, perseguindo os contrapoderes que aí se exprimem. Porém, é precisamente aqui que o feitiço se pode virar contra os feiticeiros. Quanto mais autoritários se tornam os regímenes, mais sectores da população sentirão as suas liberdades em risco. Os cidadãos empoderados tenderão, então, a fazer do novo poder o objeto da sua contestação. A derrota do partido de Recep Erdogan, em Istambul e Ancara, são exemplo de que os cidadãos começam a compreender o que se esconde por trás de discursos identitários. As dificuldades de Putin, apesar da brutalidade da sua repressão, são outro.
Boris Johnson não esperou consolidar o poder para afirmar a sua aversão à democracia liberal. A suspensão do Parlamento e a expulsão de 21 deputados do Partido Conservador, para impedir que os deputados pudessem travar o seu projeto de abandonar a União Europeia sem acordo, expuseram-no como um populista autoritário. A campanha demagógica do “Brexit” tinha sido feita em torno de devolver o poder ao povo e voltar a fazer do parlamento britânico o centro do poder democrático, raptado, segundo Boris, pela União Europeia. Agora é ele quem retira o poder ao Parlamento invocando o poder do povo representado por um homem só: o próprio Boris Johnson. O populismo autoritário de Boris enfrenta a oposição de todos os partidos políticos e de muitos membros do seu Partido. Os conservadores britânicos mostraram muito mais coragem política e convicção democrática do que os seus homónimos americanos (do Partido Republicano) que, salvo raras e honrosas exceções, têm aceitado todos os atropelos de Trump.
Em Itália, o líder da extrema-direita, Salvini, que tinha chegado ao governo em coligação, usou da sua posição como Ministro do Interior para, com um discurso populista e racista anti-migrantes, subir nas sondagens. Quando pensou que podia ganhar as eleições, sozinho, fez cair o Governo. Lançou-se de imediato em campanha eleitoral convencido de que nada travaria a sua ascensão e, sem esconder o seu objetivo, declarou: “Eu peço aos italianos todos os poderes”. Ora os eleitores, empoderados, não querem dar, seja a quem for, todo o poder.
Chovem acusações de iliberalismo sobre Boris e Salvini e o seu futuro político tornou-se mais incerto. Mas, atenção, não significa que estejam derrotados.
A ameaça que Salvini representa para a Democracia em Itália é a mais grave, desde a derrota do Fascismo. Foi isso que levou a que o 5 Estrelas e o Partido Democrático se unissem. Para impedir um regresso triunfal de Salvini é preciso que o Governo se mantenha unido e seja capaz de delinear um horizonte de esperança às classes médias angustiadas com o futuro. No Reino Unido é preciso voltar a ouvir os eleitores, através de um novo referendo, para legitimar um novo acordo ou a permanência na União. A evolução do Labour e a unidade que construiu com as outras correntes políticas na oposição ao golpe de Boris torna um novo referendo mais provável.
A União Europeia tem de fazer a sua parte, isto é, tem de participar na desconstrução do golpe de Boris, aceitando o adiamento do “Brexit” pedido pelo Parlamento. Tem também de demonstrar que o período de austeridade terminou e que compreendeu que é necessário um novo ciclo de política económica com uma forte componente social e ecológica.
O que nos mostram o Reino Unido e a Itália é que perante uma ameaça séria de conquista do poder por líderes populistas, as forças democráticas, caso se unam, podem criar-lhes enormes dificuldades. Mas não bastará unirem-se. Terão, com a coragem que tem faltado, de desconstruir o discurso identitário e racista da extrema-direita e reafirmar os valores da liberdade e da hospitalidade.
[1] Fundador do Forum Demos