O “marajá” português que dá o que recebe da Índia
Primeiro foi a fotografia, depois chegou a Índia. Duas paixões, muitas viagens intercontinentais, uma “segunda casa”, “segundas famílias”. Agora, Hugo Lima lidera viagens fotográficas que ajudam a promover projectos sociais no país que, atrevemo-nos a dizer, lhe mudou a vida.
Depois de 12 anos a viajar para a Índia, Hugo Lima conseguiu dar corpo a uma ideia que já andava a bailar-lhe na mente há alguns destes anos. Quase tantos quantos os que leva a guiar grupos pelo país – cinco. Conheceu Dhoba, no deserto do Thar (também conhecido como Grande Deserto Indiano), numa das suas viagens a solo (“meti-me numa camioneta e saí a meio do percurso, era Dhoba, 20 casinhas e casebres”) e integrou-a nos roteiros de viagens fotográficas que organiza desde 2015.
Ao longo dos anos, fez um levantamento das necessidades da comunidade e ficou clara para ele uma prioridade: mesas e cadeiras para a escola, que é nada mais do que um esqueleto de quatro paredes em tijolo cru e um tecto, alimentado pela boa vontade de Uday, o director-professor-benemérito. Os alunos sentavam-se no chão, o que, sublinha Hugo, num local onde a temperatura pode chegar aos 50 graus, não é propriamente fácil. “Tinha essa ideia, mas nos anos anteriores viajei sempre com grupos”, conta, “e só este ano, em viagem com a família, a pude concretizar”.
É que, explica Hugo, na Índia dar dinheiro não resulta (a sua experiência é eloquente) e a única maneira de ter a certeza de que a ajuda vai mesmo ser útil a quem precisa é fazendo tudo. Como ele: contactou serralheiros, carpinteiros, viu preços de metal, madeira, procurou, comparou muito. Quando regressou a Dhoba, semanas depois, já com um grupo de viajantes, a entrega tinha sido feita. “Foi um dos momentos mais emocionantes da minha vida”, assume Hugo Lima, 36 anos. “A Índia dá-me e eu quero dar-lhe.”
Afinal, a Índia é uma parte importante da vida deste fotógrafo, que até conheceu a sua companheira por causa dela, que até se fez líder de viagens fotográficas por ela. Foi em 2015, conta, que a Índia se tornou “uma fonte de rendimento”. “Guardo uma percentagem do que ganho nas viagens para estes projectos sociais”, como lhes chama, “por isso”, continua, “é importante que as pessoas que viajam comigo os conheçam, são também responsáveis por eles”.
Contudo, o caso de amor entre Hugo e a Índia começou bem antes desse 2015: foi em 2007, numa viagem “muito rápida, de agência turística”, a Goa. “Senti que era muito mais do que conheci”, recorda. Então, menos de dois anos depois, aventurou-se na sua “primeira grande viagem a solo”, 27 dias. “Pensava: vou conhecer tudo e ainda me vou aborrecer.” Na hora do regresso, em Nova Deli, não queria voltar. “Foram dias super intensos e, afinal, era pouco.” Em cada estado em que entrou sentiu que estava num país diferente, “tudo se transforma, é tudo tão distinto”.
Essa primeira grande viagem, em 2009, registou-a num blogue, “não usava Facebook”. Foi o suficiente para criar uma espécie de “culto”. “Tinha pessoas a escreverem-me diariamente, muito mais do que actualmente”, compara. Passou a ir à Índia todos os anos, ficava dois ou três meses, e os seguidores das suas aventuras indianas (como a que se tornou “viral” em 2011, a da mochila roubada num comboio que ele foi buscar um ano depois, com quase tudo lá dentro, computador incluído: “Tenho várias histórias na Índia que me levam a confiar”), já no Facebook, foram aumentando, o que, unido à popularidade dos seus cursos de fotografia, fez chover pedidos para irem com ele à Índia.
Na altura, confessa, não concebia muito bem de que forma o poderia fazer. Então, decidiu viajar com um grupo a Marrocos, para experimentar. Resultou bem, foram “cinco dias tranquilos”. Ganhou o fôlego para a Índia: 17 dias em que dá “o máximo possível do país, uma compilação do melhor” que conseguiu ao longo destes anos, incluindo as “suas” famílias, a sua segunda casa, os lugares mais emblemáticos e os que fogem aos roteiros turísticos, os projectos sociais.
Este “regresso” à Índia (e a Marrocos) é, portanto, uma das constantes na vida de Hugo, cada ano distribuído entre os dois cursos de fotografia que dá, as viagens e os festivais Primavera Sound e Paredes de Coura, dos quais é o fotógrafo oficial. Tudo se sucedeu em catadupa desde que nele despertou o interesse por fotografia, ou seja, quando trocou a Trofa natal pelo Porto para estudar artes gráficas – a ironia é que o seu pai é fotógrafo comercial e Hugo cresceu com acesso a todo o equipamento, “mas era mais do Photoshop”. A partir de 2004 assume a fotografia, onde foi autodidacta, como profissão e quando o convidam para dar formação de fotografia na Trofa hesitou bastante até aceitar, sem imaginar que as aulas se tornariam um fenómeno – já no Porto. Pelo meio, surgiram os meses na Índia, onde agora o seu tempo é dividido (“a última vez que viajei sozinho foi em 2014”): parte com a sua família, parte com os grupos.
Pushkar, que é a tal segunda casa para Hugo, é incontornável. E aí, pelas ruas, até lhe chamam o marajá. Ecos de uma história que já tem nove anos e envolveu um casamento. Na verdade, quatro casamentos em quatro dias. “É difícil resumir”, brinca. Ele não resume, mas nós tentamos: foi convidado para um casamento na família de um amigo e trajou-se a rigor com o sherwani, calças, turbante e a sua barba, na altura “bem grande”. Os convivas ficaram “loucos” com “o personagem” e foi convidado para uma série de casamentos que iam acontecer nos dias seguintes. Um desses casamentos era do filho do presidente de uma vila, 14 mil convidados. Quando entrou a comitiva da família do noivo, câmaras apontadas e ecrãs gigantes, “tipo festival de música”, as objectivas fixaram-se nele. “Era o elemento raro” e rapidamente se espalhou a palavra de que era um marajá do Norte. No dia seguinte, quando caminhava com trajes “civis”, as pessoas reconheceram-no, mas da alcunha de marajá não se livrou.
Hugo pede desculpa por falar tanto da Índia (duas horas de conversa e ainda de lá não saímos). É a paixão pelo país e a paixão pela fotografia que se unem. “Para a maior parte dos fotógrafos, de viagem e de rua, é um país a visitar. Pela cor, pelas texturas... pelas vestes, pelos rostos...”. Foi um rosto o início de uma das suas mais duradouras relações na Índia, o de Rajuri, a menina de “11, 12 anos” que Hugo conheceu em 2010 na rua. Fez-lhe um retrato e acabou em casa da sua família, da tribo Bhopa (nómadas), no deserto, “quatro estacas e um toldo, sem nada em redor”. Quis fazer algo para ajudar a família e quando regressou a Portugal imprimiu postais com fotografias deles. Conseguiu 700 euros, voltou para os entregar e percebeu que “em dois ou três dias tudo seria gasto em prata e rum”.
Então, os três dias previstos de estadia, estenderam-se por três semanas em que Hugo tentou perceber o que fazia falta e comprá-lo; tentou até ajudá-los a preparar o futuro – e teve, provavelmente, o primeiro curso intensivo de cultura indiana. Aprendeu a deixar o olhar ocidental de lado e todos os anos regressa à família de Rajuri (com grupos e com a família) – que, entretanto, casou: as filhas de Hugo já brincaram com a filha dela.
Quando regressar à Índia, em 2020, Hugo já tem outros projectos para concretizar. Não tem dúvidas: quer dar (e receber) mais.