Robert Mugabe, o professor que ensinou a liberdade e a tirania ao Zimbabwe

Foi o ícone da libertação do Zimbabwe, mas Mugabe depressa mostrou o seu autoritarismo. Os 37 anos que esteve no poder ficaram marcados pela pobreza e pela violência. Ninguém chora em Harare.

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Robert Mugabe morreu aos 95 anos AARON UFUMELI/EPA

Aos 95 anos, dos quais 37 passados no poder, Robert Mugabe morreu em Singapura, onde estava internado desde Abril. Deixa um legado complexo. De líder da luta anticolonial, chegando a ser um exemplo em África, Mugabe tornou-se um déspota, rejeitado até pelos próprios camaradas na fase final da sua vida.

Mas oficialmente a veneração ao “pai” do Zimbabwe foi mantida até ao último momento. O seu sucessor, Emmerson Mnangagwa, definiu Mugabe como “um ícone da libertação, um pan-africanista que dedicou a sua vida à emancipação e ao fortalecimento do seu povo”. E mesmo o líder do Movimento pela Mudança Democrática (MDC), Nelson Chamisa, na linha da frente da oposição ao regime, reconheceu a “contribuição” do antigo Presidente ao país.

O julgamento não é unânime. George Walden, um dos negociadores britânicos dos Acordos de Lancaster House em 1979 que puseram fim ao regime de minoria branca na então Rodésia, definiu Mugabe como “um verdadeiro monstro”. “Não se deve falar mal dos mortos, excepto quando mataram tanta gente como Mugabe”, afirmou Walden à BBC.

Nas ruas de Harare, a indiferença à notícia da sua morte é dominante, embora poucos consigam recordá-lo por alguma coisa positiva. “Morreu como toda a gente. Deixou-nos nesta confusão e ainda estamos a sofrer”, disse ao The Guardian o professor Nomarn Makoto.

A melhor síntese talvez seja feita pelo diário sul-africano Mail and Guardian que descreve Mugabe como “um enigma, uma mistura de contradições que de certa forma lhe dava vigor em vez de o derrubar”.

O intelectual da guerrilha

Robert Gabriel Mugabe nasceu a 21 de Fevereiro de 1924 numa missão católica em Kakuma na Rodésia do Sul, uma colónia britânica governada pela minoria branca, e onde um negro filho de um carpinteiro teria hipóteses reduzidas de alcançar uma vida melhor. A educação nas escolas católicas permitiu que prosseguisse os estudos e se formasse professor. Era descrito como um aluno inteligente.

Robert Mugabe e a mulher Grace, no dia do casamento, a 17 de Agosto de 1996 Howard Burditt / Reuters
Mugabe com Nelson Mandela, em Dezembro de 1998 Howard Burditt / Reuters
Mugabe durante um comício em Bindura, em Abril de 2000 Howard Burditt / Reuters
Robert Mugabe durante um comício em 2002 Juda Ngwenya / Reuters
Mugabe abraça o Presidente da Bielorrússia, Alexander Lukachenko, e o Presidente venezuelano, Hugo Chávez, durante uma cimeira dos Não-Alinhados, em Havana, em 2006 Claudia Daut / Reuters
Mugabe durante a sua passagem por Lisboa, em Dezembro de 2007, para a cimeira Europa-África Enric Vives-Rubio
Mugabe durante a cerimónia de tomada de posse, a 29 de Junho de 2008 EPA
Mugabe come um bolo durante os festejos do seu 85.º aniversário, em 2009 Philimon Bulawayo / Reuters
Mugabe conversa com o rei da Suazilândia, Mswati III, numa visita ao país em 2010 Siphiwe Sibeko / Reuters
Uma das últimas aparições públicas de Mugabe, nas vésperas das eleições de 2018 Siphiwe Sibeko / Reuters
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Robert Mugabe e a mulher Grace, no dia do casamento, a 17 de Agosto de 1996 Howard Burditt / Reuters

Mugabe deu aulas no Gana, onde conheceu a primeira mulher, depois de ter estudado na Universidade de Fort Hare, na África do Sul, onde fizeram a sua formação intelectual vários líderes africanos. Por lá passaram Nelson Mandela, e outras figuras de movimentos de libertação africanos, como Julius Nyerere, da Tanzânia, e Kenneth Kaunda, primeiro Presidente da Zâmbia.

Regressou à Rodésia do Sul (ainda colónia britânica) em 1960 para se integrar de imediato na oposição clandestina ao regime colonial. Em pouco tempo, assumiu uma posição de liderança na União Nacional Africana do Zimbabwe (ZANU), mas em 1964 foi detido sem direito a julgamento, acusado de “discurso subversivo”.

Passou dez anos na prisão, durante os quais o Governo de minoria branca liderado por Ian Smith nem o deixou sequer de assistir ao funeral do filho de três anos. Quando foi libertado, em 1974, Mugabe atravessou a fronteira para Moçambique com uma máquina de escrever. A partir de Maputo lançou as suas guerras: uma interna para consolidar o poder na ZANU e outra externa contra Ian Smith. Estes foram os anos da guerra da libertação, que até hoje servem como fonte primordial de legitimidade política no Zimbabwe.

Enfraquecido e isolado, o regime colonial foi obrigado a negociar com a oposição negra e Mugabe distinguia-se entre os seus líderes. Era visto como um intelectual, um negociador hábil e pragmático. Os Acordos de Lancaster House permitiram a criação de uma nova Constituição para o recém-independente Zimbabwe, que descartou a nomenclatura colonial de Rodésia, adaptada do nome do infame Cecil Rhodes, um dos expoentes do colonialismo britânico em África.

A ZANU venceu de forma convincente as primeiras eleições pós-independência e Mugabe tornou-se no primeiro chefe de Governo do Zimbabwe. O mundo aplaudia este intelectual que se tornara num ícone da libertação dos povos africanos e chegava ao poder.

Inicialmente, essa expectativa pareceu corresponder à realidade. Mugabe adoptou um tom conciliatório e afastou os receios dos que temiam uma política punitiva em relação aos brancos. Prova disso é que o odiado Ian Smith se manteve como deputado e líder da oposição. O Governo de Mugabe lançou ambiciosos programas de saúde e de educação, pioneiros no continente, e a economia conheceu um período de florescimento.

Décadas de violência

Ao mesmo tempo, porém, a dimensão autoritária e violenta de Mugabe emergia. A sua prioridade foi desde cedo concentrar em si o máximo de poder, nem que para isso tivesse de se virar contra os antigos companheiros de armas. O seu alvo era a ZAPU, de Joseph Nkomo, outro movimento de libertação do qual a ZANU havia divergido anos antes, e que era apoiado pela União Soviética – Mugabe era mais próximo da China maoísta.

Em 1982, uma unidade especial do exército é enviada para a província de Matabelelândia, onde havia relatos de uma insurreição, e ao longo de vários anos acaba por matar 20 mil pessoas, na sua maioria da etnia nbedele, apoiante da ZAPU. Nkomo, que já tinha sido afastado do Governo, percebeu que a sua vida corria um risco sério e exilou-se em Londres. A ZAPU acabou incorporada na ZANU, que passou a denominar-se ZANU-PF, transformando-se num instrumento crucial para a hegemonia que Mugabe viria a ter nas décadas seguintes.

Fora das fronteiras, nada disto fazia ainda soar os alarmes. Mugabe só põe o primeiro pé no clube dos párias internacionais quando começa a promover a expropriação de propriedades agrícolas detidas por brancos, a partir de 2000. Mais de quatro mil proprietários perderam as suas terras, muitas vezes forçados de forma violenta a abandoná-las, num ambiente de impunidade. As consequências económicas são devastadoras.

É no final do século que a oposição consegue finalmente organizar-se em torno do Movimento para a Mudança Democrática (MDC), que tem nos sindicatos um forte apoio. O MDC coloca a Mugabe um desafio que ainda não conhecia: o de eleições competitivas. Nas legislativas de 2000, a oposição assegura 57 dos 120 lugares no parlamento e a ZANU-PF treme.

A partir daí, o regime monta uma máquina de repressão política que persegue jornalistas, activistas e políticos da oposição, para garantir que a hegemonia de Mugabe e da ZANU-PF permanecem intocáveis. Mais de 200 pessoas foram mortas em 2008 depois de o candidato do MDC, Morgan Tsvangirai, ter derrotado Mugabe na primeira volta das presidenciais. Tsvangirai acabou por recusar participar na segunda volta por causa do clima de violência e intimidação instalado no país.

Pressionado interna e externamente, Mugabe subscreveu um acordo de partilha do poder com a oposição e nomeou Tsvangirai primeiro-ministro. A coabitação foi fértil em controvérsias e seria desfeita em 2013.

O Zimbabwe era, por esta altura, um país empobrecido, governado por um autocrata que não se coibia de dar banquetes faustosos para celebrar os seus aniversários. Com a queda abrupta da produção agrícola e o efeito das sanções económicas, a economia colapsou. A inflação bateu recordes e a moeda local foi mesmo abandonada em 2008. Milhões emigraram, sobretudo para a África do Sul, à procura de emprego e em fuga de um país sem futuro.

A morte política

O ocaso do percurso político de Mugabe ficou definido na luta pela sua sucessão. Em Novembro de 2017, quando afasta o poderoso vice-Presidente, Emmerson Mnangagwa, mostrando uma preferência clara pela mulher, Grace, para lhe suceder, sem o saber, Mugabe abre um processo com um desfecho inimaginável.

A elite da ZANU-PF e do exército rejeita abertamente Grace, que também não desperta a simpatia da população com os seus gastos excessivos, ostentação e autoritarismo. Em poucos dias, foram oferecidas a Mugabe várias saídas graciosas do poder, sem que transparecesse a ideia de que o “pai” da nação estivesse a ser forçado. Não seria assim tão fácil. Mugabe rejeitou todas as alternativas até ao derradeiro minuto e viu o partido que controlou a criticá-lo publicamente.

Apesar de contrariado, saiu, fechando um ciclo que foi festejado efusivamente por todo o país. Uma das suas últimas aparições públicas foi extraordinária. Na véspera das eleições presidenciais do ano passado, as primeiras em que não era candidato, Mugabe convocou uma conferência de imprensa de surpresa para declarar apoio ao adversário de Mnangagwa, virando as costas à ZANU-PF. Acreditou, até ao fim, que mantinha o poder de influenciar o país que governou.

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