O desastre consumado em São Carlos
A nomeação de Elisabete Matos para a direcção artística do teatro nacional de ópera é um disparate consumado – que inclusive poderá não beneficiar uma cantora com a sua projecção internacional. E confirma o desastre que foi a governação socialista da Cultura.
Num teatro de ópera, as funções de director artístico e de intérprete – cantor/a – são totalmente distintas.
Aos primeiros cabe programar, e desejavelmente com a maior diversidade, tendo em conta os meios de produção do teatro mas também um conhecimento internacional dos cantores, maestros e encenadores que melhor podem concretizar o desenho da programação pretendida. É igualmente importante que possuam contactos próximos com os seus congéneres de outros teatros – e, sejamos absolutamente claros, não existe neste momento em Portugal ninguém que reúna essas qualificações.
Aos segundos cabe evidentemente interpretar, de acordo com o tipo de vocalidade que desenvolveram e o reportório em que se especializaram – porque há cantores para os mais diferentes tipos de reportório, do barroco ao contemporâneo.
A nomeação de uma cantora, Elisabete Matos, para directora artística do São Carlos cria uma situação no mínimo equívoca e que certamente é nos seus pressupostos um disparate consumado.
Sabemos bem que Elisabete Matos tem uma carreira internacional como nenhum outro cantor português, inclusive já tendo actuado no Scala e no Met. E agora o que vai suceder? Diz ela que terá de “abrandar” essa carreira. Lamento, mas não basta.
Um teatro de ópera precisa de um director artístico a tempo inteiro e não tem por isso cabimento que, mesmo abrandando a sua carreira internacional, Elisabete Matos não esteja totalmente dedicada às funções de directora artística – para equívocos parecidos já bem bastou o regresso de Paolo Pinamonti como “consultor” enquanto mantinha as suas funções de director do Teatro da Zarzuela, em Madrid.
E não deixa de ser também de lamentar que, com uma carreira internacional já tão consolidada, mas que continua em ascensão, Elisabete Matos tenha agora de a “abrandar”.
Mas há mais dúvidas: é inteiramente legítimo perguntar o que conhece ela, em termos de intérpretes e de reportório, para além daquele em que se especializou, como soprano dramático, isto é o reportório verdiano, verista e wagneriano.
Sobretudo é inaceitável para um cargo desde tipo o argumento da “preferência nacional” em que se baseou o convite endereçado pela ministra Graça Fonseca e já colhe aplausos.
Depois de ter tornado o Théâtre de La Monnaie, em Bruxelas, num dos mais salientes da Europa, o belga Gérard Mortier foi o grande renovador do Festival de Salzburgo, mais tarde dirigiu a Ópera de Paris e em seguida o Teatro Real de Madrid. O francês Stéphane Lissner foi director artístico do Scala de Milão. Que não se venha pois com essa lamúria de que “nós, portugueses” é que não fazemos justiça aos “nossos valores”.
Dar oportunidades a cantores e intérpretes portugueses é importantíssimo, certamente uma das prioridades do teatro nacional de ópera, outra coisa, bem distinta, é a identidade de um director artístico. E isso da “preferência nacional” em São Carlos tem uma história de péssimos antecedentes. Limito-me a um exemplo: em 1993, num governo de Cavaco Silva, sendo Maria José Nogueira Pinto subsecretária de Estado da Cultura, com o pelouro das artes e espectáculos, deu-se início à constituição da actual Orquestra Sinfónica Portuguesa (OSP), estando indigitado para seu director, e sendo o maestro presente nas audições dos músicos, o britânico Martin André; quando Nogueira Pinto, pessoa de rara integridade, saiu do governo, depois de entrar em conflito com o secretário de Estado da tutela, Pedro Santana Lopes, este achou que o maestro da OSP não devia ser um britânico mas um português, no caso Álvaro Cassuto.
Está pois em “boa companhia” Graça Fonseca – logo Pedro Santana Lopes! O argumento da “preferência nacional” que determinou a opção da ministra é profundamente provinciano, mais do que isso pacóvio, e revela um profundo desconhecimento das características próprias de um teatro nacional de ópera que, justamente por o ser, se inscreve numa rede internacional de teatros congéneres.
Esta nomeação é um disparate consumado – e receio que inclusive não beneficie uma cantora com a projecção internacional de Elisabete Matos, que terá de renunciar a algumas oportunidades –, mais outro neste desastre de governação socialista da Cultura.