Billie Eilish chegou, viu e electrizou
Uma euforia indescritível tomou conta do corpo de 20 mil pessoas, maioritariamente adolescentes, cantando em conjunto com a americana Billie Eilish, na Altice Arena de Lisboa, numa noite de quarta-feira que muitos não esquecerão tão cedo.
Já o concerto ia na sua fase final, quando ela se sentou numa cama de ferro que se foi elevando do solo, na companhia do irmão, à guitarra, para dizer que aquela canção (I love you) havia sido composta a dois numa situação semelhante. No quarto, às duas da manhã. Essa é a história de parte considerável da música popular. Canções criadas numa situação de intimidade, focando as angústias juvenis perante a vida, acabam sendo celebradas de forma efusiva por milhares de pessoas por esse mundo fora.
Ainda assim, no caso de Billie Eilish, 17 anos, o caso é mais particular. É que as letras das suas canções e o imaginário desconforme e obscuro – mas inofensivo – que evoca nos seus vídeos e nas imagens que passam nos ecrãs gigantes não é de forma nenhuma aquele que estamos habituados no mercado de massas da música pop. Essa é talvez a maior lição do concerto da noite de quarta-feira, perante 20 mil pessoas, maioritariamente adolescentes e seus pais, que lotaram a Altice Arena – ou seja, o lado mais bizarro e atormentado do que expõe acaba por se diluir no meio da autêntica comemoração que constituiu o espectáculo.
Desde o primeiro dia que vamos ao Altice Arena. Já vimos ali muita euforia. Beyoncé, U2, Coldplay, Rihanna, Madonna, Kendrick Lamar, enfim, o leque mais variado de propostas que se possa imaginar. E sinceramente não nos lembramos de uma recepção assim, 20 mil gargantas (enfim, alguns pais deverão ter ficado calados e confusos, ainda agora sem saber se é suposto gostar do que viveram) gritando a plenos pulmões e cantando todas as canções do início ao fim. Foi um daqueles concertos em que palco e público estão tão interligados que é impossível dissociá-los. Então, a primeira meia hora, foi um autêntico dilúvio de vozes, praticamente abafando as vocalizações da figura da noite.
Foi isso. Ela chegou, como sempre com um visual andrógino, T-shirt larga, ténis num pé e no outro bota, acompanhada de dois músicos – o irmão Finneas, nos teclados, baixo e guitarra, e um baterista. Quando começaram a tocar Bad guy a casa veio abaixo, com uma vibração electrizante, com muitos pais a esta hora a pensarem o que é que lhes terá escapado nos últimos tempos.
É que, como todos os grandes fenómenos do género na cultura fragmentária em que vivemos, existe uma camada de público – essencialmente juvenil – que segue todos os passos de Billie Eilish e uma larga fatia de pessoas que nunca ouviram falar dela.
Perplexidades adolescentes e não só
Depois de o fenómeno se ter sedimentado nos últimos meses, principalmente após o lançamento em Abril do álbum de estreia When We Fall Asleep, Where Do We Go?, muito se tem falado se ela corresponde ou não ao protótipo da celebridade fabricada, ou se será um acontecimento genuíno apanhado na curva do sucesso. Isso agora não importa grande coisa. A verdade é que olhando para o naipe de ídolos juvenis à nossa volta – de Ed Sheeran a Taylor Swift – é impossível não vislumbrar que ela é francamente mais complexa e musicalmente mais estimulante.
E esse é o traço que fica. O cenário não é barroco (com excepção do quadro da cama elevatória, nada de muito artificioso acontece), optando-se pela eficácia das imagens e um jogo de luzes minimalista, com a atenção concentrada nos dois músicos e, principalmente, nela, acedendo por vezes à boca do palco, que entra pela plateia adentro.
Existe troca de palavras com a assistência, pedindo para o público criar círculos em You should see in a crown, ou para se baixar e depois saltar “como se fossem cangurus” em Copycat, enquanto em Wish you were gay pega numa bandeira arco-íris, numa alusão à comunidade LGBT, mas nada de transcendente acontece em termos de comunicação. Porém, a relação de identificação é total.
O concerto desenrola-se maioritariamente em duas direcções. Há canções mais efusivas em termos rítmicos (Bury a friend, Bellyache), com linhas de baixo encorpadas e as dinâmicas digitais, num jogo entre a pop electrónica e motivos repescados das ramificações da cultura hip-hop, criando um corpo sonoro singular, e outras que se aproximam mais da ideia de jornada introspectiva e melancólica (Ocean eyes, When the party’s over, Idontwannabeyouanymore ou Listen before i go). Seja num caso ou noutro, o que já conquistava em disco, e fica provado ao vivo, é a ausência de rímel. As canções são justas, descarnadas, quase como se conseguíssemos olhar para dentro da sua estrutura, e as palavras conectam-nos directamente com as perplexidades adolescentes que são, tantas vezes, as da vida inteira.
No final pediu para o público ver com ela o vídeo estreado horas antes para All the good girls go to hell, sentando-se de lado no palco, como se estivéssemos todos em sua casa, e tudo acabou como havia começado, com juras de amor mútuo, e toda a gente em delírio, pulando e cantando a plenos pulmões, outra vez, Bad guy, vincando a ironia do duh!
Foi uma bela noite. Billie Eilish não constitui a salvação seja do que for. E poderá ver a sua proposta, num futuro próximo, ser condicionada pelas tentativas de normalização industriais. Mas neste preciso momento é uma mais do que saudável aragem de ar puro no panorama da música pop de massas.