Por que é que pessoas magras têm o fígado gordo?
Se cientistas na Austrália ajudaram a desvendar diferenças da doença do fígado gordo não-alcoólico entre pessoas magras e obesas, um centro de investigação em Portugal lidera um projecto europeu – o Foie Gras – só dedicado a essa doença.
Apesar de muitas das pessoas com doença do fígado gordo não-alcoólico terem excesso de peso, também há muitos doentes magros. Como é que esta doença se desenvolve em pessoas magras? Uma equipa de cientistas da Austrália, Irão e Itália percebeu que os doentes magros têm níveis mais elevados de ácidos biliares e de uma proteína do que os doentes com mais peso. De acordo com os investigadores, esta descoberta pode contribuir para o desenvolvimento de potenciais tratamentos para esses doentes.
A doença do fígado gordo não-alcoólico caracteriza-se pelo excesso de gordura no fígado em pessoas que não bebem álcool ou que o fazem em pequenas quantidades. Geralmente, resulta de estilos de vida relacionados ao consumo elevado de açúcares e gorduras e de um acentuado sedentarismo. Esta doença pode levar a problemas como a cirrose hepática e cancro hepático.
Pensa-se que entre 25% a 30% da população portuguesa tenha esta doença e no mundo os valores variam entre os 5% e os 40%. Embora se desenvolva habitualmente em pessoas obesas, também pode afectar pessoas mais magras – com um índice de massa corporal (IMC) de menos de 25, valor obtido dividindo o peso pela altura ao quadrado de uma pessoa –, que tendem a ter piores resultados da doença do que as obesas.
Para perceber a diferença desta doença entre magros e obesos, uma equipa coordenada por investigadores da Universidade de Sydney (Austrália) comparou o metabolismo, bactérias intestinais e perfis genéticos de 538 pessoas magras, com excesso de peso e obesas com a doença do fígado gordo, assim como de 30 pessoas magras sem a doença.
Verificou-se então que as pessoas magras com fígado gordo tinham níveis mais elevados de ácidos biliares – que têm um papel determinante na digestão de gorduras – e também de uma proteína chamada “factor de crescimento de fibroblastos 19” (FCGF19). “Os ácidos biliares e o FCGF19 aumentam o consumo de energia, o que pode explicar por que razão os indivíduos magros com fígado gordo continuam magros”, explica Jacob George, da Universidade de Sydney e co-coordenador do estudo publicado na revista científica Hepatology, num comunicado sobre o trabalho. “Isto sugere que os magros com fígado gordo podem ter um perfil ‘resistente à obesidade’ e uma melhor adaptação ao consumo excessivo de calorias.”
A equipa identificou ainda diferenças em bactérias intestinais e genes – como uma variante do gene TM6SF2, mais comum em pessoas magras – entre pessoas com IMC superior a 25 e magras. “O mecanismo metabólico de adaptação no fígado gordo nas pessoas magras tende a perder-se nas últimas fases da doença, o que pode explicar a razão pela qual esses doentes têm piores resultados da doença comparados com os obesos”, acrescenta Mohammed Eslam, também da Universidade de Sydney e co-coordenador da investigação.
“O estudo ajuda a desvendar por que razão as pessoas magras têm a doença do fígado gordo. Demonstra ainda que têm um metabolismo, bactérias intestinais e perfis genéticos distintos em comparação com os doentes que não são magros, o que contribui para o desenvolvimento e a progressão da doença nessas pessoas”, diz Mohammed Eslam, adiantando que já está a estudar se estes resultados podem ter novas aplicações terapêuticas.
Uma bomba-relógio
O Centro de Neurociências e Biologia Celular (CNC) da Universidade de Coimbra também coordena um projecto europeu dedicado à doença do fígado gordo não-alcoólico, a Rede Europeia de Formação Avançada Foie Gras (fígado gordo, em português). Ao todo, 13 instituições não só de Portugal – além do CNC, participam a Faculdade de Farmácia da Universidade de Lisboa, a Universidade do Porto e a Associação Protectora dos Diabéticos de Portugal –, mas também da República Checa, Itália, Polónia, França, Alemanha e de Espanha. O projecto tem cerca de 3,2 milhões de euros do programa de financiamento europeu Horizonte 2020, para conhecer melhor os mecanismos patofisiológicos (alterações fisiológicas), descobrir novos biomarcadores e intervenções eficientes da doença (afinal, não há nenhuma 100% eficaz) e ainda comunicar ciência. Iniciado em Janeiro de 2017, neste projecto 13 jovens também farão o doutoramento.
“Neste projecto, investigámos de que forma mediadores internos e externos subjacentes à disfunção metabólica, como a remodelação da bioenergética hepática e alterações no eixo intestino-fígado, influenciam a progressão do fígado gordo, o que permite estudar novos biomarcadores e alvos terapêuticos”, diz ao PÚBLICO Paulo Oliveira, do CNC (que recebeu 477 mil euros) e coordenador de todo o Foie Gras.
Durante o projecto, tem-se estudado a função das mitocôndrias (organelos celulares que têm a função de produzir energia das células) à medida que a doença progride ou metodologias não-invasivas para determinar o estádio da disfunção hepática. Até ao final do projecto, em Dezembro de 2020, ainda serão concluídos estudos clínicos e em modelos animais para se testarem potenciais tratamentos ou novos biomarcadores.
Como algo preocupante, Paulo Oliveira destaca a tendência do aumento da percentagem de crianças até aos 12 anos com fígado gordo em Portugal, o que está ligado aos seus “péssimos” estilos de vida. “O facto de cada vez mais crianças terem fígado gordo não-alcoólico sugere que estamos na presença de uma bomba-relógio para a saúde pública.”