Nem Scorsese conseguiu mudar o mercado — O Irlandês não deverá estar nos grandes cinemas
O filme vai estrear-se apenas em salas seleccionadas nos EUA, a 1 de Novembro, e terá estreia mundial na Netflix 26 dias depois. O serviço de streaming não cede nos prazos e as grandes cadeias de exibição insistem na exclusividade de três meses.
A Netflix acaba de revelar os seus planos para O Irlandês, que não trazem novidades em relação ao passado: o épico de Martin Scorsese sobre a Mafia, com Robert De Niro e Al Pacino, não deverá ter um grande lançamento em sala, ficando-se pelos cinemas independentes e pequenos exibidores norte-americanos, onde terá a sua estreia a 1 de Novembro. O filme chega 26 dias depois à plataforma de streaming, em simultâneo para todo o mundo. Rondas e rondas de negociações em que o próprio realizador terá estado envolvido não foram suficientes para convencer as grandes cadeias de cinema a estrearem um filme Netflix sem a antecedência de três meses que era seu ponto de honra, nem a Netflix a ceder o exclusivo aos exibidores por mais umas semanas.
Ao fim de meses de negociações entre exibidores e Netflix, relatadas na semana passada pelo New York Times (e que, como escreve esta terça-feira a revista Hollywood Reporter, em alguns casos contaram com a presença do próprio Martin Scorsese) não houve mudanças em relação ao statu quo. O filme não deverá estar nas grandes cadeias de cinemas porque não terá uma vida em sala superior a 30 dias – esta fora a última oferta da Netflix antes de as negociações terem rompido no início do Verão.
Haverá 26 dias de O Irlandês "em salas seleccionadas” de Los Angeles e Nova Iorque antes da estreia na Netflix; o plano inclui ainda a estreia mundial no Festival de Cinema de Nova Iorque a 27 de Setembro e uma exibição a 13 de Outubro no Reino Unido, para encerrar o Festival de Cinema de Londres. As salas britânicas exibirão o filme a partir de 8 de Novembro.
De permeio, e a cada semana, somar-se-ão mais cidades norte-americanas e mundiais até dia 27 de Novembro, sendo que os planos para uma eventual estreia em sala em Portugal não são ainda conhecidos – Roma, de Alfonso Cuarón, estreou-se em algumas salas de exibição independente portuguesas na véspera da sua chegada à Netflix, por exemplo. O número total de salas para O Irlandês não é ainda conhecido, nem se sabe que exibidores receberão nas suas salas o novo filme do autor nomeado por oito vezes para o Óscar de Melhor Realizador – um filme que a Netflix acabou a produzir depois de a histórica Paramounto ter achado demasiado caro.
O Irlandês é o filme que a indústria observa atentamente para perceber o estado do mercado: o efeito Scorsese poderia finalmente convencer os maiores exibidores dos EUA, e por conseguinte as grandes salas de cinema do mundo, a cederem às condições impostas pela Netflix? Ou cederia a Netflix na sua política de primazia aos assinantes para dar gás ao filme de Scorsese nos cinemas e à sua própria ambição da validação através dos Óscares? Não e não, de acordo com o plano revelado esta terça-feira: a Netflix não fez cedências e as condições dos exibidores estão longe de se verem cumpridas.
No fundo, opõem-se aqui duas formas de funcionamento. Os cinemas operam com prazos de exclusividade em sala de três meses; só depois os filmes são libertados para as outras plataformas como o vídeo on demand ou os canais premium. Os serviços de streaming distinguem-se por estrearem mundialmente os seus títulos sem parar na antiga casa de partida – os cinemas. A Netflix está na linha da frente desta batalha entre dois modelos de negócio distintos, mas também a Amazon Studios já testou os limites do mercado e, no futuro próximo, com a chegada do serviço de streaming Disney+ onde o grande estúdio vai pôr filmes Fox e Disney, as regras podem ficar mais perto de ser reescritas. Este e outros novos serviços, como a HBO Max e seu catálogo da Warner, são também uma forte concorrência para a Netflix.
Agora, a revista Variety aponta que exibidores independentes como a Landmark ou a Alamo Drafthouse deverão acolher O Irlandês, e a sua concorrente Hollywood Reporter detalha que a Netflix costuma alugar estas salas ou custear gastos de forma generosa para assegurar distribuição sem ter de partilhar receitas, ao contrário do que acontece nos negócios convencionais entre distribuidores e exibidores. Isso garante-lhe também que não tem de revelar os números de bilheteira, prática muito cara ao serviço de streaming também no que diz respeito às suas audiências televisivas.
A data de estreia escolhida pela Netflix calha em vésperas do feriado e fim-de-semana prolongado de Acção de Graças nos EUA. No que toca às salas, a sua presença prevista nos cinemas acaba por ser comparável à “carreira modesta” de Roma, como classifica esta terça-feira o New York Times. O exemplo do ano passado neste jogo de forças cinematográfico, Roma, de Alfonso Cuáron, teve um máximo de 21 dias em sala antes de chegar aos subscritores da Netflix em todo o mundo. Receberia os Óscares de Melhor Filme Estrangeiro e de Melhor Realizador mas falhou o Óscar de Melhor Filme, para o qual também estava nomeado.
O Irlandês terá custado 143,5 milhões de euros e conta com De Niro, Al Pacino, Joe Pesci e Harvey Keitel numa história que atravessa décadas (e que saiu encarecida pela tecnologia digital de rejuvenescimento dos protagonistas), girando em torno do desaparecimento do líder sindical dos camionistas Jimmy Hoffa e das suas potenciais ligações ao crime organizado. É a primeira vez que Pacino filma com Scorsese e a nona vez que De Niro trabalha com o realizador de Taxi Driver. O trailer do filme já foi visto mais de cinco milhões de vezes só na conta oficial da Netflix no YouTube e a estreia rodeia-se de grande expectativa, independentemente dos jogos de poder e de mercado que giram à sua volta.