Serviço Nacional de Saúde: investimento ou endividamento?

Faz agora onze anos que começaram as promessas para a construção de uma nova ala pediátrica no Hospital de São João. Onze anos, cinco governos, três primeiros-ministros (José Sócrates, Passos Coelho e António Costa) e cinco ministros da saúde. O recente anúncio das últimas medidas para a tão desejada resolução deste problema revela-se uma excelente oportunidade para análise e reflexão sobre o “como aqui se chegou” e, sobretudo, “como se foi querendo resolver”. Contudo, qualquer análise que seja feita nunca nos deve desviar dos dois problemas cruciais: a indispensável e urgente melhoria das condições de trabalho e assistenciais na ala pediátrica no Hospital São João e tudo fazer para que estas situações não se repitam e, sobretudo, não voltem a prejudicar os mais frágeis e indefesos, neste caso, crianças com doenças oncológicas.

Desde 2008, muitas situações mereciam destaque. Centrando-nos no período final é impossível esquecermo-nos a retórica discursiva, vazia de sentimento e significado, do anterior ministro da saúde Adalberto Fernandes que, a 16-04-2018, anunciava que “não há mais tempo nem mais espaço para conversa que não seja autorizar a obra, lançar o procedimento e executá-lo no mais curto espaço de tempo possível. O dinheiro está disponível, mas há questões de tramitação processual, que penso que em uma semana ou duas semanas estarão em condições para que os procedimentos formais possam ser lançados”. No mês seguinte, a 30-05-2018, Adalberto Fernandes desmentia-se a si próprio e vinha agora justificar que “o dinheiro público é demasiado importante para ser gerido de forma intempestiva e, naturalmente, quando se decide um investimento de 20, 24 ou 22 milhões de euros estas decisões têm de ser suportadas em avaliação efetiva dos projetos, das propostas e dos investimentos que estão envolvidos”.

Mais recentemente e há quase um ano (19-09-2018), assistimos a mais um passo marcante com o anúncio de que o Governo autorizava o concurso para construção da nova ala pediátrica do São João. Segundo o jornal PÚBLICO desse dia, o Ministério das Finanças dava finalmente “luz verde” num documento assinado pelos ministros das Finanças e da Saúde e publicado em Diário da República. Na mesma notícia, o então Presidente do Conselho de Administração do Hospital de São João, Oliveira e Silva, afirmava poder contar estar em condições de lançar o concurso para o novo centro pediátrico dentro de três semanas e dizia que, a correr bem, as obras poderiam arrancar dentro de um ano.

Finalmente a 19-08-2019 e, por coincidência, a menos de dois meses das próximas eleições, é publicada mais uma portaria que autoriza o Hospital de São João a “assumir o encargo até 22,5 milhões de euros”, mais IVA, referente à construção e apetrechamento do Hospital Pediátrico Integrado. Para 2019, o hospital fica autorizado a assumir um encargo até 3,7 milhões de euros, o mesmo que em 2021, sendo 2020 o ano relativo ao montante mais elevado: 15 milhões de euros. Citando a comunicação social, é desta forma que a portaria “autoriza” o hospital de São João a “assumir os compromissos plurianuais” para celebrar os contratos necessários, pelo período de três anos, com vista à construção e equipamento da nova ala pediátrica.

Correndo o risco de não sermos peritos em “economês político pré-eleitoral”, nas notícias sobre a portaria não há referência a transferência ou reforço de verbas ou dotações financeiras, mas a uma autorização de assumir encargos com compromissos plurianuais até 22,5 milhões de euros mais IVA. A dúvida persiste: será que estamos perante um novo conceito de investimento no SNS que aumenta o endividamento dos hospitais públicos e os respetivos encargos, fragilizando-os e, eventualmente, desviando verbas necessárias para outras áreas? Uma dúvida que urge esclarecer porque o mal de uns é uma oportunidade de negócio para outros. Veja-se o exemplo do BFF Banking Group, uma instituição financeira internacional, que já é o principal credor do Serviço Nacional de Saúde e parte muito interessada, segundo dados do grupo financeiro, num universo de dívidas do setor da saúde a privados de 5,8 mil milhões de euros, dos quais 1,7 a 1,8 mil milhões de euros de dívida dos hospitais.   

Salve-se a paciência de todos os profissionais de saúde que estoicamente conseguiram e conseguem trabalhar e fazer milagres nestas condições e, muito particularmente, das crianças e seus familiares que a tudo têm sabido resistir, conscientes do valor supremo da vida humana.

Médico e cofundador do #SNSinBlack

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