Enquanto se formam memórias visuais, ocorre um “fogo-de-artifício” no cérebro
Estudo em pessoas com epilepsia mostra que tanto quando se formam memórias visuais como quando nos lembramos delas se geram rápidas “explosões” no cérebro.
Está a fazer uma viagem pelo mundo e vai-se deparando com diferentes paisagens. Nesses momentos, quer guardar essas imagens na sua memória para depois poder descrevê-las aos amigos. Tanto quando armazena essas memórias visuais como quando as relata acontece um “fogo-de-artifício” no cérebro, segundo um artigo científico publicado na última edição da revista Science. Isto é, durante a formação e lembrança de memórias visuais, o hipocampo (região do cérebro associada à formação e consolidação de memórias) gera rápidas “explosões” na actividade neuronal. Ao desvendar este mecanismo, os autores afirmam que podem vir a melhorar-se as terapias usadas na recuperação de doenças em que há défices de memória, como a doença de Alzheimer.
Essas explosões chamam-se “ondulações rápidas formadas por ondas” (SWR) e são como uma orquestra muito bem sincronizada. “É um acontecimento extraordinário em intensidade e sincronização: uma explosão orquestrada pela activação sincronizada de cerca de 15% dos neurónios do hipocampo – todos juntos em chamas durante cerca de um décimo de segundo. É um fogo-de-artifício de células nervosas”, descreve Rafael Malach, do Instituto de Ciências Weizmann, em Israel, e um dos autores do estudo, num comunicado da sua instituição.
Sabia-se que esse fogo-de-artifício ocorre no hipocampo de roedores e que tem um papel importante na sua memória espacial. Mas, como não se consegue saber o que os roedores pensam, não se compreendia quando ocorrem essas explosões. Também se sabia que no cérebro humano o hipocampo gera SWR durante o sono e o descanso. Recentemente, percebeu-se ainda que são geradas no cérebro dos primatas quando estão acordados, mas desconhecia-se o seu papel na actividade mental e cognitiva. Qual o problema? Muitos métodos de análise não dão aos cientistas uma visão detalhada do que acontece no cérebro.
Agora, uma equipa de cientistas de Israel e dos Estados Unidos analisou o que acontecia em 15 pessoas com epilepsia, que já estavam a fazer um tratamento em que lhes eram implantados eléctrodos em diferentes regiões do cérebro para localizar o foco da doença e serem depois operadas.
Na experiência, a equipa começou por apresentar aos participantes fotografias muito detalhadas de pessoas famosas, como Barack Obama, Leonardo DiCaprio e Uma Thurman, ou de monumentos, como a Estátua da Liberdade. Os participantes tinham então de memorizar essas fotografias. Mais tarde, de olhos vendados, relembraram-nas e descreveram-nas detalhadamente. Ao mesmo tempo, a descrição das imagens e actividade cerebral correspondente (captada pelos eléctrodos implantados no hipocampo e no córtex cerebral, zona onde se formam representações visuais mais complexas) eram gravadas.
Verificou-se então que o cérebro gerava SWR durante a formação de memórias dessas fotografias e depois quando essas mesmas imagens são recordadas. Como? Observou-se que havia um grande número das rápidas explosões no hipocampo quando os participantes viam uma fotografia pela primeira vez e um subsequente aumento das SWR um ou dois segundos antes de as imagens serem recordadas e descritas.
“Houve mais explosões durante a formação das memórias [das fotografias] do que quando os participantes estavam a lembrar-se delas. Também houve mais explosões durante a primeira apresentação de cada fotografia do que em apresentações já repetidas”, esclarece ao PÚBLICO Yitzhak Norman, também Instituto de Ciências Weizmann e autor do trabalho.
Em todos os cérebros?
Além disso, a equipa registou actividade cerebral simultaneamente no hipocampo e no córtex, o que revela o papel fundamental do diálogo orquestrado entre estas duas partes do cérebro. “Fomos os primeiros a demonstrar que essas rápidas explosões no hipocampo surgem espontaneamente durante a recordação de memórias nos humanos e a mostrar que estão aliadas à actividade cortical [do córtex]”, frisa Yitzhak Norman.
Resumindo, tudo acontece assim: durante a formação de uma nova memória o hipocampo gera SWR. Depois, um ou dois segundos antes de nos lembramos dessa memória, essas explosões ressurgem. Durante essas explosões, as representações visuais no córtex relacionadas com a nova memória são reactivadas.
Mas, se este estudo foi só realizado em pessoas com epilepsia, também se aplica a todos os humanos? Yitzhak Norman refere que não é possível aplicar o mesmo método invasivo em pessoas sem epilepsia: “Contudo, estudos em roedores e primatas não humanos mostraram claramente que essas explosões ocorrem em cérebros sem epilepsia.”
Precisamente, como futuro trabalho, Yitzhak Norman gostaria de medir a actividade das SWR com métodos não invasivos, como a imagem de difusão por ressonância magnética funcional (fMRI, na sigla em inglês), para conseguir caracterizar detalhadamente essas explosões e investigar a sua ligação a doenças em que há défices de memória, como a de Alzheimer e o stress pós-traumático.
A compreensão de que as SWR têm um papel central na memória episódica humana poderá oferecer novos conhecimentos para aperfeiçoarmos ferramentas e métodos terapêuticos que melhorarão directamente processos de recuperação de doentes que sofrem défices de memória, como doentes com Alzheimer”, indica o cientista.
Numa das ilustrações que acompanha a divulgação deste trabalho, os cientistas fazem uma alusão ao fresco A Criação de Adão. Afinal, quando estamos a observar o tecto da Capela Sistina, em Roma, não há apenas uma explosão de beleza em frente aos nossos olhos, mas também um fogo-de-artifício no cérebro.