Beidaihe: a praia que inspirou Mao, onde a conspiração não tirava férias
Durante décadas, a estância balnear no nordeste da China concentrou os principais dirigentes políticos durante o Verão. A importância de Beidaihe é um reflexo das mudanças históricas do país.
Tempestades desabam sobre as terras de You-Yan
As brancas ondas assaltam o céu
Além de Qinhuangdao alguns barcos de pesca à deriva
Escondidos da vista pela imensidão do mar
Para onde foram?
A história desta terra tem mil anos
Quando o imperador Wudi de Wei brandiu o seu chicote
E deixou ao mundo este poema: Desço a Qianshi.
Hoje, como então, o suave vento de Outono sussurra e geme
Nada mudou, excepto no mundo do Homem.
The Writings of Mao Zedong: 1949-1976 (tradução livre)
Quando Mao Tsetung visitou Beidaihe pela primeira vez, em Abril de 1954, ficou tão impressionado com a tranquilidade da praia e com a temperatura amena, longe do calor infernal de Pequim no Verão, que regressou logo em Julho. Nesse ano, permaneceu na estância balnear até Setembro, quando a maioria dos dirigentes partidários já tinha voltado à capital. Durante a sua estadia, o fundador da República Popular da China escreveu até um poema em honra de Beidaihe, que se tornou num dos seus mais recitados.
Depois de Mao se ter apaixonado por Beidaihe, a estância balnear a 300 quilómetros a nordeste de Pequim tornou-se na capital administrativa e política da China durante os meses de Verão. Os dirigentes comunistas mais destacados, tanto do partido como do Exército do Povo, eram convidados para frequentar as festas e os banquetes, mas sobretudo as importantes reuniões que muitas vezes determinavam o rumo político dos meses seguintes.
Enquanto Mao permanecia em Beidaihe, um comboio especial circulava diariamente entre a praia e Pequim, transportando documentos e funcionários sempre que o “Grande Timoneiro” necessitasse, conta o New York Times. Os encontros entre altos quadros do Partido Comunista (PCC) serviam quase sempre para que se limassem arestas antes dos plenos, as reuniões magnas do partido. Distribuíam-se cargos, juntavam-se apoios, tramavam-se conspirações palacianas, alianças eram construídas e destruídas.
Mas Beidaihe também foi palco de decisões com relevância histórica. Em Agosto de 1958, várias reuniões do Politburo do PCC serviram para lançar as bases do “Grande Salto Em Frente”, o programa de reformas económicas que visavam acelerar a passagem da China de uma economia sustenta pela agricultura para uma potência industrial. O plano acabou por redundar num tremendo fracasso, destruindo a capacidade agrícola da China e é tido como responsável pela morte de dezenas de milhões de pessoas, vítimas da fome.
Alguns relatos dão conta, no entanto, que nos anos em que a crise alimentar foi mais intensa, em Beidaihe, o peixe fresco nunca faltou nos banquetes entre altos quadros comunistas.
No mesmo Verão de 1958, entre algumas idas à praia, Mao deu ordens para o bombardeamento da ilha de Kinmen, que era o território mais próximo da China continental controlado pelas forças nacionalistas do Kuomintang, com o intuito de lançar a partir daí uma invasão de Taiwan. O bombardeamento começou a 23 de Agosto, uma data escolhida propositadamente por Mao por coincidir com o aniversário do pacto Molotov-Ribbentrop, com o objectivo de provocar a União Soviética.
Braçadas políticas
A paixão de Mao por Beidaihe não foi capaz de sobreviver à Revolução Cultural e durante quase duas décadas deixou de receber os dirigentes comunistas no Verão. Porém, um dos episódios mais dramáticos que retrata a turbulência que marcou esta época aconteceu em Beidaihe. Foi daqui que em Setembro de 1971, Lin Biao, um dos heróis da Guerra Civil e apontado como sucessor de Mao, embarcou no avião que iria despenhar-se na Mongólia pouco depois. A morte de Lin ficou desde sempre envolvida numa aura de grande mistério. A narrativa oficial designou-o como um contra-revolucionário que morreu quando tentava fugir para a União Soviética, mas permaneceu sempre uma profunda desconfiança de que tudo acabou por ser um ajuste de contas entre diferentes facções do PCC.
Beidaihe não fazia as delícias apenas da elite chinesa. O ex-Presidente norte-americano, George H. W. Bush, e a sua família, incluindo o filho e futuro Presidente, George W. Bush, eram uma presença assídua nas praias locais durante o período em que dirigiu o Gabinete de Ligação dos EUA no país, nos anos 1970. Conta o China Daily, que George W. chegou a elogiar o ar puro da praia, que teria sido responsável pela cura de uma tosse de que sofria.
Só nos anos 1980, depois de Deng Xiaoping ter assumido o poder é que Beidaihe voltou a usufruir do estatuto de capital em tempo de banhos. Tal como Mao, Deng também se viu cativado pelas águas e areias locais, e cultivou o hábito de nadar no mar, onde se dizia sentir “mais livre e cheio de vigor”.
Num ambiente em que os sinais dizem mais do que as palavras, as braçadas dos líderes chineses passaram a assumir um significado político. A partir dos anos 1990, o PCC viu-se invadido por uma obsessão com a saúde dos seus dirigentes. Imperava então o receio de que o regime seguisse os passos da União Soviética, liderada por uma elite envelhecida.
Foi então que a performance dos líderes chineses no mar de Beidaihe passou a servir como barómetro. Em 1992, no último Verão que passou na estância balnear, então com 88 anos, Deng insistiu em nadar várias vezes, contrariando ordens médicas. O líder que pôs a China no caminho das reformas económicas costumava dizer que a sua capacidade para nadar indicava a sua condição física, enquanto as suas prestações a jogar bridge mostravam a rapidez da sua mente. Acabaria por morrer cinco anos depois.
Fim de uma época
A transformação da China numa potência económica de cunho mundial conferiu a Beidaihe o espírito do fim de uma época. Os chineses enriqueceram e encontraram outros locais mais apelativos para gastarem o seu dinheiro e hoje a indústria turística local vive por conta de excursões low-cost da Rússia, diz a Reuters. No início do novo milénio, até a importância política de Beidaihe se perdeu, depois de Hu Jintao ter acabado com as reuniões de Verão.
Com Xi Jinping – que nos últimos anos ascendeu a um patamar hierárquico apenas ao nível de Mao e Deng –, Beidaihe voltou a concentrar as atenções dos observadores da política chinesa durante o Verão. Mas o formato das reuniões reflecte as mudanças ocorridas na China nas últimas décadas.
Tal como nos tempos de Mao e Deng, Agosto em Beidaihe é tempo de reuniões e consultas entre os dirigentes comunistas para que sejam encontrados consensos. Mas hoje são convidados empresários, académicos e cientistas para participarem nos encontros, penetrando numa esfera tradicionalmente reservada aos políticos de topo.
Este ano, as semanas na praia em Beidaihe prometem ser tão atarefadas como a época regular de trabalho em Pequim. Às manifestações antigovernamentais em Hong Kong junta-se a guerra comercial entre a China e os EUA, e estas devem ser as duas grandes crises a dominar as discussões. Com tanto em análise é duvidoso que Xi tenha possibilidade de dar umas braçadas no mar. Os analistas terão de procurar outros indicadores para perceberem a vitalidade do líder chinês.