O corpo e a guitarra, o som e o movimento: Rocío Molina quer voltar ao essencial do flamenco

A artista espanhola regressa a Portugal para apresentar em Montemor-o-Velho Impulso Citemor, um work-in-progress em torno da ideia de despojamento. A acompanhá-la, diz, estarão “as três guitarras mais importantes do flamenco de hoje”.

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SIMONE FRATINI

De cada vez que inicia um novo projecto, Rocío Molina não se fecha numa sala a criar e a ensaiar incessantemente até que o resultado final possa ver pela primeira vez a luz do dia numa estreia absoluta. O método da artista espanhola, um dos nomes mais relevantes do flamenco actual, passa por partilhar com o público, à medida que este evolui, o seu processo de criação, de experimentação e de improvisação, que mais tarde dará origem a uma produção de maior fôlego e amplitude. Rocío chamou Impulsos a essa série de apresentações preliminares que já tiveram lugar em cidades como Barcelona, Paris, Nîmes ou Nova Iorque, em locais tão díspares como uma praça, um museu ou a margem de um rio.

É essa a lógica de Impulso Citemor, que será apresentado este sábado, às 22h30, em Montemor-o-Velho, encerrando a edição deste ano do festival de artes performativas. Não é um espectáculo, nem uma obra acabada. “É um ensaio aberto”, explica ao PÚBLICO a bailaora (jargão do flamenco para bailarina) sobre a performance site-specific, criada para exibir na Sala B, e que não se repetirá.

A série Impulsos acaba por ser uma forma de “improviso para procurar e provocar coisas” – “um laboratório” nada privado, onde o trabalho é realizado em frente aos olhos do público, refere. A ideia é mostrar “não só o que está bem, mas também as dúvidas” ou processos inacabados dos quais possam nascer sementes, “fragmentos de criação”.

Rocío Molina estará em palco apenas com Yerai Cortés, Eduardo Trassiera e Dani de Morón, ou, como a bailarina e coreógrafa se lhes refere, “as três guitarras mais importantes que há no flamenco de hoje”. Este será o primeiro encontro dos quatro intérpretes, num Impulso que vai alimentar uma nova criação ainda sem nome definido, a estrear em 2020 nos Teatros del Canal, em Madrid.

Despir a cena

Quando Rocío Molina se sentou para falar com o PÚBLICO, na quarta-feira, levava apenas um dia e meio de trabalho e teria ainda outros dois pela frente antes da apresentação. Tanto quanto já podia adiantar sobre esta forma ainda em curso, a artista quis sublinhar a necessidade de evocar a simplicidade. Estava encontrado o início deste impulso: “muita lentidão, movimento muito pausado”, para procurar a “essência mais pura”. Uma explicação que encaixa igualmente na escolha do lugar onde apresentará este sábado o seu flamenco, que mantém numa tensão entre a tradição e a transgressão: a Sala B, um antigo armazém bem no centro de Montemor, é uma área a céu aberto, entre quatro paredes despidas que sobreviveram à remoção da cobertura e de um primeiro piso. Daí que Molina o tenha escolhido, pela intimidade que transmite, que se alinha com o tipo de trabalho que lhe interessa explorar neste momento.

A apresentação de Impulsos no Citemor é na prática um regresso a esta edição do festival. Em Junho, a artista que recebeu pela segunda vez este ano o UK National Dance Award de melhor bailarina contemporânea passou por Portugal para apresentar Caída del Cielo: primeiro no Porto, no Teatro Municipal Rivoli, depois na Figueira da Foz, no Centro de Artes e Espectáculos, num posto avançado da programação do Citemor. Foi então que a premiada renovadora do flamenco passou por Montemor-o-Velho, em busca de um espaço para a apresentação que agora se consuma.

Também quando estava a criar Caída del Cielo, espectáculo que continuará a apresentar em Espanha e França até ao final do ano, Molina ensaiou vários impulsos. A procura de imagens, de sensações é semelhante, diz, mas o resultado que pretende é diferente. No espectáculo anterior, a bailaora apresentava-se “mais provocadora, mais energética”, ou, como explicou ao PÚBLICO em Junho, com uma intensidade física que a levava a procurar os seus limites. “Agora passei para o lado oposto, da calma, do cuidado. Interessa-me ir à raiz e ao básico”, conta. Interessa-lhe o despojamento, tanto dos gestos como dos artifícios cénicos. O que significa ficar apenas com “a essência”, ou seja, “a guitarra e um corpo”. Apurando ainda a descrição deste improviso trabalhado, Molina diz querer “despir a cena”, para que sobre o palco “não haja nada mais importante do que o som e o movimento”.

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